Capítulo 3

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Outubro de 1773
Prisão de Pedrouços, Pedrouços, Águas Santas
Reino de Portugal e dos Algarves


Acostumado ao silêncio a que fora submetido, não foi sem espanto que o bispo-conde conimbricense ouviu o som de céleres batidas na porta. Para que a porta pudesse abrir, já que sua cela tinha pouco mais de nove palmos de comprimento – e praticamente o mesmo tanto de largura – ele rumou em direção à parede oposta à porta.

Pondo a cabeça pela abertura, o guarda que o vigiava, Giovanni Cappelari, italiano residente há anos em Portugal, olhou para o prelado e fez o sinal combinado. Foi só então que D. Miguel da Anunciação pôde relaxar. A fim de cumprimentar quem quer que tivesse vindo vê-lo, o Bispo de Coimbra – e Conde de Arganil ex officio – levantou-se. Não costumava receber muitas visitas, muito menos durante a noite.

Giovanni retirou-se da passagem, abrindo caminho para o visitante. Pela fresta entreaberta, surgiu a ponta de uma longa capa negra, seguida por um corpo com quase seis pés e três quartos de altura, conforme o cálculo do sacerdote. Encimando-lhe a cabeça havia um capuz que conservava a feição que ocultava recôndita de olhares alheios.

– Quem?

– Disseram que o senhor queria me ver – respondeu o estranho, com uma voz áspera e profunda – Bem, eis-me aqui.

– Ora pois! – se os anos atrás das grades não o mantivessem sempre no limite de suas forças e reservas energéticas, seria certo que os olhos do bispo-conde se encheriam de brilho – És o servo perdido dos Távoras!

– Sim, sou eu.

– Deus seja louvado no mais alto dos céus! Não fazes ideia do quanto me és necessário.

O longo manto farfalhava de leve enquanto o rapaz andava. Ele encostou as costas e o pé direito erguido na parede – flexionando o joelho tal qual um horrendo flamingo corvídeo – e, mantendo a cabeça baixa, voltou a sussurrar com sua voz gutural:

– Necessário? O que planejas para mim, padre?

– Uma viagem ao Brasil.

– Desejas mandar-me ao Inferno equinocial? – o homem emitiu uma gargalhada capaz de fazer com que o bispo temesse por estar junto com tão assustadora criatura – Não caio nas histórias de São Boaventura, nem nas de Santo Tomás: não há Éden nenhum naquele tórrido báratro.

Ainda que não fosse possível vê-los, os olhos do estranho visitante fitavam, frios e orgulhosos, o prelado, esperando pela resposta. A altivez, porém, abalou-se quando D. Miguel ergueu-se e encarou-o bem no fundo da alma.

– Não foi um pedido. Sei quem és e o que procuras descobrir em suas câmaras escuras, cujo odor sulfúrico recende ao próprio demônio – a voz endureceu. Realmente não se tratava de um pedido, mas sim de uma ordem inquestionável – Se estás aqui, vieste pelo chamado do Pai. E ele faz-me te dizer: irás ao Brasil, queiras ou não. Foi-me revelado que o demônio lá irá atuar, e, como Pastor da Santa Madre Igreja, cabe a mim zelar por ela e seu rebanho.

– Hm... – a voz áspera continuou, doce e zombeteira – Bem, digamos que eu aceite a proposta. Como eu faria para ir? Não possuo 30$000 réis para seguir viagem... Será que o Bispo-Conde de Coimbra seria capaz de conseguir tal quantia de hoje para amanhã? Ou hás de pedir tantos mil-réis para o rei e seu odioso Marquês? – terminou o encapuzado, cuspindo no chão.

– Vejo que és um homem inteligente. Vejo, também, a graça de Deus já agindo em ti – respondeu D. Miguel, com seus olhos argutos satisfeitos em surpreender o ocultista – Curioso falares em nosso querido d. José I, pois é justamente com os réis d'el-Rey que mandar-te-ei para o Brasil.

Fez-se um silêncio enquanto, por sob a capa, o homem cogitava a possibilidade. O bispo tinha um plano mui bem formado, e sem volta. Nunca se imaginara no Brasil e, mesmo tendo que se manter oculto durante anos, valendo-se de óleo de vitríolo para tornar-se irreconhecível, jamais imaginara emigrar do velho continente.

Ainda assim, talvez nem tudo estivesse perdido. Talvez Deus estivesse realmente preparando algo grandioso para ele.

Talvez Ele ainda o amasse.

– E como tal artifício se dará, já que encontras-te preso?

– Ainda que preso, permaneço bispo e bem relacionado. Minha ideia – D. Miguel empertigou-se, orgulhoso e ansioso por relatá-la – é entregar-te ao Tribunal da Santa Inquisição.

– Estás maluco? Sabes quem é o Inquisidor-Mor?

– Sim. O Cardeal da Cunha.

– E então?! Não foi ele um dos primeiros a se voltar contra os Távoras, de cuja família também ele descende, renegando ao próprio sangue, o maldito bastardo, e contra os próprios sacerdotes jesuítas? Que ele é protegido do, maldito para todo o sempre, Marq...

– Sim. Não há de que me explicar sobre a história, genealogia e ligações políticas de nossas terras, pois disso bem eu sei – sou um preso político, pois. Só quero que saibas que da Cunha é tão estúpido que chego a temer pelo futuro da Igreja – o bispo suspirou, desconsolado – Há frei Inácio também, mas, antes de que me venhas com interrupções, é outro com o qual não pretendo travar contato. Deus nos livre de Frei Inácio de São Caetano, tão inteligente como é terrível, confessor da futura rainha, outro responsável pelas crises que a Igreja enfrenta. Foi-se o tempo dos grandes padres, como d. Miguel de Távora e d. Inácio de Santa Teresa, que comigo lutaram contra os inquisidores pombalinos que queria confissões à força – o bispo ergueu os olhos aos céus, murmurando um pedido a Deus para que livrasse sua Igreja de tantos homens mal-intencionados – Apesar disso, possuo contato com o Patriarca, D. Saldanha da Gama, e com o franciscano D. Lourenço de Santa Maria, bispo de Algarve, que é quem, in pectore, escolhi para dar seguimento ao processo. Claro que o teu processo já está pronto, ei-lo aqui, e feito com nome diferente do teu, mas nada que uma justificação forjada não resolva. Só preciso que o assines, demonstrando que o conheces, e já terás a tua passagem.

– Pois olha só! – exclamou o encapuzado, quase permitindo-se um sorriso retorcido – Deixa-me ver, ao menos, o que foi que eu fiz para receber tal senten.. Ah!, não creio! – disse enquanto ria, emitindo altos arquejos – Sou, então, um necromante? Hahahaha. Realmente conheces do que faço.

– Não há ovelha de meu rebanho que me escape – o bispo-conde continuou – Como sabes, cursei Cânones. As Ordenações preveem justamente o degredo para o Brasil como pena para necromancia. Quanto aos três mil reis de multa, consegui-os com os meninos de Palhavã, por intermédio do filho do meio, D. Gaspar, arcebispo de Braga e primaz das Espanhas. Qualquer um dos três vale mais do que el-Rey. Ficaram honrados em poder ajudar a manter a paz nos territórios ultramarinos do reino – D. Miguel suspirou, terminando em voz baixa, pelo canto da boca – Deus me perdoe, mas é como se el-Rey fosse o bastardo...

O homem ergueu os olhos à tocha que iluminava o quarto e ficou um bom tempo pensativo, admirando as labaredas e flâmulas, questionando às salamandras o que fazer. Não muito depois, as chamas ergueram-se à direita: justamente o sinal que não queria receber.

– Pois bem. Aceito – disse, ainda que resignado – Mas, só para saber: o que o bruxo aqui terá de fazer?

– Vejo que não estás muitointeressado na viagem – D. Miguel começou, encostando-se à parede epermitindo-se um sorriso cansado, mas ainda assim matreiro, brincalhão – Seráque te animaria saber que enfrentarás mortos-vivos?    

1218 palavras.

O Quilombo Maldito (Concluída)Onde histórias criam vida. Descubra agora