1 - Esquisito

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     O cheiro do guisado de ganso selvagem atraiu os quatro meninos que brincavam no campo para a cozinha da fazenda. O sol brilhava no centro do céu, quente e forte como se fosse verão e não outono e o vento sacudia com força as copas das árvores, as plantações e os cabelos negros dos meninos. Eram os filhos do caçador do condado, todos os quatro espantosamente parecidos e selvagens como lobos. Mesmo em idade jovem, eram caçadores promissores e orgulho de seu pai. Acompanhados de bons cães e suas lanças, adagas e arcos, desbravavam a floresta aos arredores da fazenda e traziam seus troféus de caça para casa, para que a mãe, uma mulher igualmente geniosa e selvagem, os cozinhasse e costurasse.

     Os quatro entraram pela porta dos fundos e rodearam a mulher baixa de cabelos e olhos negros que os colocou no mundo. O pai, ouvindo a agitação, apareceu à porta da cozinha, trazendo consigo a faca que acabara de amolar.

     - Quietos! Quietos, seus animais! - gritou a mãe, depositando a panela de guisado sobre a mesa.

     De fato, os quatro pareciam e agiam como animais. A não ser por um deles, o quinto filho.

     - Onde está Guido? - perguntou o pai, enquanto se sentava com os filhos à mesa.

     A mãe fez um muxoxo, enxugando as mãos no avental encardido. De seus cinco filhos, Guido, o mais novo, era o mais estranho para ela. Ele se parecia fisicamente com todos os outros - talvez um pouco mais baixo e franzino -, mas as semelhanças se encerravam aí. Guido não gostava de caçar e, mesmo que gostasse, não serviria para isso. Era um garoto medroso de poucos talentos, que passava seus dias cuidando dos animais da fazenda e, por mais que tentasse, não era capaz de manejar uma espada ou atirar com um arco. Todos sabiam que ele era um inútil.

     - Guido vai virar um feiticeiro, mãe - disse Clarke, o quarto filho, com a boca cheia de pão murcho. Ele tomou um longo gole de água para engolir o alimento e limpou a boca com as costas da mão. Então continuou a difamar o irmão caçula: - Nós o vimos pegando umas ervas na beira do rio.

     - Todo mundo sabe que ervas são coisa de feiticeiros - acrescentou Eugene, o terceiro filho, entre uma mordida e outra em seu pedaço de ganso.

     - Esse moleque não tem jeito... - resmungou o pai, antes de cuspir um pedaço de osso no chão.

     A mãe acerta a cabeça de Clarke e Eugene com tapas fortes.

     - Parem de dizer besteira e comam! - ralhou ela, mau humorada como sempre ficava quando o filho mais novo era mencionado. Todos faziam chacota a respeito do garoto e sempre a culpavam por não tê-lo criado direito. Era constrangedor e humilhante. Assumiu seu lugar à mesa, ao lado do marido, e não se falou mais em Guido durante a refeição.

     Guido estava mais distante de sua bruta família do que nunca. Ele costumava se refugiar com suas plantas, pedras e objetos misteriosos no sótão abandonado da casa, mas hoje encontrara um tesouro na estrada, enquanto tentava acompanhar os irmãos até a floresta. Um amontoado de papéis presos a uma capa de couro - aquela coisa que as pessoas ricas da aldeia chamam de livro. Guido encontrara no meio de arbustos um exemplar de mais páginas do que sabia contar e se encantara instantaneamente com as letras e gravuras. Nunca antes havia tocado em um livro, apesar de já ter visto alguns em suas viagens com o pai à aldeia. Era um objeto belo por si só e Guido mal podia esperar para devorar todas as páginas apenas começar a lê-lo outra vez. Dentre os cinco irmãos, ele era o que mais sabia sobre as palavras. O pai permitiu que aprendesse a ler e a escrever o básico para ajudá-lo com as vendas de peles de animais e carne, já que Guido não tinha nenhuma outra utilidade. A mãe, no entanto, opôs-se ao que ela chamava de "prática esquisita" e proibiu Guido de continuar seus estudos na escola comunitária da aldeia. Curioso, ele nunca parou de tentar aprender.

A Raposa [VENCEDOR 'THE WATTYS 2018']Onde as histórias ganham vida. Descobre agora