9 - Uma queda

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     Guido esperou sentir dor, ou falta de ar, ou a chegada da morte. No entanto, não sentiu absolutamente nada, como se seu corpo inteiro estivesse entorpecido e incapaz de se mover. Estava consciente e pensava com clareza, apesar do medo óbvio que sentia, mas suas pernas e braços não respondiam quando ele tentava agitá-los submerso na lama grossa e mortal. Suas entranhas estremeceram - se a lama era mesmo mortal, por que ele ainda estava vivo? Guido não conseguia compreender. Parecia que a morte estava constantemente a um centímetro de distância de alcançá-lo e que, sempre no último momento, ele escapava. Era o que vinha acontecendo desde que pisara no Bosque de Antazes há um ano. Guido tivera dezenas de encontros com seu fim, mas escapou de todos eles. Escaparia dessa poça de lama entorpecente?

     Seus olhos foram as primeiras partes a voltarem a se mover, bem lentamente. Guido os abriu e não viu nada além de escuridão. Tentou mover os braços e pernas para nadar até a superfície da poça, mas os membros não responderam. Então, subitamente, uma tosse forte irrompeu de seu peito e pulou pela boca, o que resultou num sopro misterioso de ar em seus pulmões. Guido sentiu seu peito subir e descer conforme ele respirava. Logo em seguida, conseguiu mover o pescoço e depois os ombros. Aos poucos, toda e cada parte de seu corpo voltou a funcionar. Desesperado, Guido agitou as pernas e os braços para cima, buscando o fim daquela escuridão opressora.

     Ouviu Jeor gritar quando sua cabeça saiu de dentro da poça de lama. O caçador e a raposa afastaram-se da margem enquanto o garoto se arrastava para fora, apoiando-se em arbustos e plantas que morriam conforme ele as tocava. Estava todo sujo de lama ácida. Caiu de joelhos na terra fofa e, tendo um último vislumbre de seus dois companheiros de viagem, desmaiou.

     Guido sonhou que estava em uma campina belíssima ao pôr-do-sol. Via fazenda de sua família ao longe, firme e imponente como nunca fora, e admirava o céu limpo colorido. O vento sacudia seus cabelos e acariciava seu rosto. De repente, ouviu risos femininos e viu a figura radiante de Silvie aproximar-se dele a cavalo. Era ela, mas estava diferente. Usava um vestido de veludo vermelho decorado com fios de ouro e havia uma tiara prateada incrustada com pedras azuis em sua cabeça. Seus cabelos castanhos estavam soltos e livres, também agitados pelo vento. Silvie parecia uma princesa. Quando seu cavalo cinzento alcançou Guido, a garota estendeu-lhe a mão. "Vamos!", ela chamou. "Vamos, Guido!". Ele segurou a mão dela e, no instante em que pegou impulso para subir no cavalo, foi atingido por água fria.

     O garoto acordou num salto, molhado, desnorteado e espantado, e procurou ao seu redor qualquer coisa que lhe parecesse familiar. Viu o sol prestes a se esconder no horizonte e um enorme lago a sua frente. Apalpou os próprios braços e pernas para garantir que não estava ferido e suspirou, aliviado, ao erguer a cabeça e ver Jeor e a raposa olhando para ele.

     - O que aconteceu...? - resfolegou Guido.

     A raposa deu alguns passos para mais perto dele, parecendo preocupada. Jeor, atrás dela, olhava para Guido como se o garoto fosse algo inacreditável.

     - Você caiu na poça, Guido - disse a raposa. - E está vivo. Eu nunca vi nada assim acontecer em toda a minha vida.

     - Como fez isso? - perguntou Jeor.

     Guido abriu a boca, mas não sabia o que responder. Não tinha ideia do que havia acontecido e não era capaz de explicar como sobrevivera.

     - Não sei - confessou.

     - Você nao parece machucado - observou a raposa. - Sente dor em algum lugar?

     Guido negou com a cabeça. E olhou para o lago.

A Raposa [VENCEDOR 'THE WATTYS 2018']Onde as histórias ganham vida. Descobre agora