Capítulo 1 || Gabriel

461 77 391
                                    

Está chovendo lá fora. Vejo os pingos de chuva na janela como lágrimas, o pranto de um dia morto.

Morto, como eu queria estar, porém, me encontro aqui deitado numa cama, vendo todos que amo se lamentando por minhas escolhas precipitadas, ou talvez, friamente calculadas.

O cheiro do hospital me causa ânsia, tantas pessoas que realmente precisam de cuidados, e eu aqui, ocupando espaço por odiar viver.

Minha tentativa de morrer foi completamente inútil, apenas consegui reunir um pouco mais de frustração, algo que já vinha acumulando há tempos. Meus familiares estão todos abismados, tentam fortemente me fazer achar a vida uma maravilha e me dão a impressão, de que meus sentimentos são as coisas mais erradas que alguém pode sentir.

É algo que ninguém pode entender.

Nem sempre há um verdadeiro motivo, mas eu insisto na escuridão, ou talvez ela insista em mim.

Respirar já não parece tanto privilégio, me sinto como um corpo morto que realiza atividades no piloto automático, sem ninguém realmente no comando, com sonhos ou caminhos para seguir.

Gostaria apenas de paz, de fugir dos problemas sem ninguém para cobrar as consequências depois, talvez, a tentativa de suicídio tenha sido isso. Não haveria alguém para me julgar depois da morte, na verdade, ao menos eu não estaria presente para me importar.

A porta do quarto se abre, quebrando minha reflexão miserável, e uma enfermeira entra com um pacote.

— Este livro é 'pra você – diz ela estendendo a mim o objeto em suas mãos — Sua noiva pediu para te entregar — aceno estoicamente, rasgando o papel para ver se é algo que me interessará o suficiente para uma boa distração.

Ao ver o título do livro, só consigo me decepcionar, jogando-o na mesinha ao lado da cama e voltando a olhar para janela. Um livro de autoajuda? O título é tão tosco que nem me dou o trabalho de ler a sinopse.

"Viver é a saída"? Grande piada, me sinto como uma criança que está aprendendo a ler e as pessoas insistem em soletrar cada palavra, mas no meu caso, querem enfiar na minha mente ilusões de que ser feliz é fácil, que basta querer. Pode até ser assim, porém, não é o que consigo fazer; não é o que eu penso. Sinto-me sufocado nesse mundo de mentiras, tendo como premissa o fato de ser um herege no meio do otimismo.

Com raiva levanto da cama e arranco o soro em meu braço. Em um surto infantil e descabido, vou até a parede e começo a socá-la, enquanto deixo as lágrimas escorrerem pelo rosto, quentes e taciturnas, como as gotas de chuva na janela; com os dentes cerrados, sufoco minha raiva, tentando aguentar a pressão.

Me sinto fraco, mas continuo a esmurrar a parede com a força que me resta, por motivo algum, apenas porque para minha decadência, isto parece viável.

A enfermeira chega ao quarto e se assusta com minha situação, correndo em seguida para chamar por alguém que não me importa quem seja. Apenas, quero que o mundo pare de tentar me entender, sendo que nem se dá o trabalho de me perguntar de fato o que há.

Sinto pessoas me segurando e tudo que posso fazer é deixar a raiva fluir, ao fundo posso ouvir a voz do meu pai, dizendo que estou louco e que devia parar de fazer essas "coisas". Algo espeta meu braço e tudo se torna lento, a escuridão me toma e não consigo continuar de pé.

Mais uma vez, o torpor que eu almejava para sempre, chega numa proporção que ainda me insatisfaz.

[...]

Acordo me sentindo tonto, o soro está novamente no meu braço, mas não vejo necessidade alguma. Numa forma de protesto, retiro-o novamente, contudo, dessa vez de forma calma, apenas para que entendam que eu tenho autonomia para decidir o que eu quero ou não.

Olho para fora e agora já não chove mais, alguns raios de sol tentam passar pelas nuvens densas e por alguns momentos, foco na sensação letárgica que isso me traz. Depois da explosão de raiva, a melancolia me tomou novamente, como já era de praxe, algo do qual sequer me surpreendo. Deitado, mantenho-me observando a parede branca à minha frente, tentando desvendar o vazio da minha mente.

— Posso entrar ou você vai me socar até a morte? — ouço a voz de meu melhor amigo ao entrar no quarto, mesmo que tenha pedido permissão já o fazendo. Saulo sempre esteve ao meu lado, e não tivemos tempo ainda para conversar sobre o ocorrido. Não houve tempo para nada, contudo, vejo que agora me sobra tempo até demais.

— Já entrou mesmo, o que posso dizer? — digo sorrindo fracamente, sua presença ainda consegue elevar um pouco meu estado de espirito.

— Você é um idiota, sabia? Preocupou a todos nós. — declara ele com sua voz forte, tentando esconder a mágoa pelo acontecimento que poderia ter dado certo. Se tivesse sucesso, essa exasperação não estaria sob minhas vistas, sendo meu tormento.

— É complicado... Eu não consigo aceitar mais isso. Viver com esse tormento não é viver, é morrer aos poucos todos os dias. Pensei em acabar tudo de uma vez... — suspiro enquanto olho para o ponto fixo na parede vazia, pensando no que acabo de dizer como se não fosse pela milésima vez. Colocar essas palavras em voz alta as deixam ainda mais verdadeiras, mais cruéis ao meu estado mental conturbado.

— Mas acho que você é capaz de aguentar, a tristeza é um vício que pode ser vencido assim como todos os outros... – a fala de Saulo se assemelha a um band aid sobre um braço quebrado, tem intenção de ajudar, mas no final das contas, apenas serve como um empecilho inútil, em meio a névoa da negação que me acomete a cada novo incentivo.

— Não acho que você vá conseguir me entender verdadeiramente, Saulo, nem eu mesmo consigo me entender ainda! — exclamo me elevando um pouco, minha respiração se torna um pouco mais pesada e a frustração me enche novamente. Sequer há como deter esse sentimento, resta-me apenas aceitá-lo, até que transborde e me leve ao auge de uma crise.

— Eu, talvez não entenda, mas posso achar alguém que possa.

Suas palavras me deixam atordoado, como ele pode dizer uma besteira dessas? Se alguém se prestasse a me escutar, capaz que eu não desejasse terminar aquilo que não deu certo.

— Saulo, o que te leva a crer nisso? Preciso de tempo para pensar e pôr as coisas no lugar, ou mesmo sair daqui para me jogar de qualquer ponte, a primeira que aparecer. Eu só quero me livrar disso, dessa dor que não tem tamanho nem limite — as lágrimas enchem meus olhos e seco o rosto com força, chorar é exaustivo e somente me faz um tolo — Preciso ficar bem, quero aprender a ficar bem, e não me deixar levar pelos fantasmas que me visitam quando deito em meu travesseiro todas as noites.

— Gabriel, entenda que ninguém está sozinho no mundo, se mesmo perto de seus familiares e amigos, você se sente incompreendido, eu darei um jeito de arrumar alguém que entenda melhor — seus olhos estão exalando determinação e imagino que ele não vá parar até conseguir o que quer — Só te peço 20 dias. Apenas isso.

Fecho os olhos pensando em suas palavras, ao menos, ele não me entregou um livro de autoajuda. Se bem que, do jeito dele, usaria o livro para me bater e não me ajudar com leitura.

— Te darei os 20 dias, mas não tenho esperanças de que vá poder me ajudar. Sinceramente, não creio que algo possa me ajudar — digo calmamente olhando para a janela, e mal escuto sua confirmação quando ele sai do quarto.

Volto a ver as nuvens que cobrem o sol, e o brilho começa a despontar com mais força pela janela, como se algo bom pudesse acontecer. Sinto-me num torpor sem fim, fico imaginando o que Saulo pretende fazer para tentar me ajudar.

Após um tempo, o Sol se põe e continuo a fitar a janela. Rostos sem importância entraram no quarto e, tão logo quanto chegaram, se foram, após a desilusão de não terem minha atenção. Adormeço lentamente pensando em histórias, onde consigo realmente, ver um rumo para seguir.

Prisões de Papel (Em Revisão)Onde histórias criam vida. Descubra agora