Capítulo 2 - Anne

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Atenção: Contém gatilhos sobre auto-mutilação, suicídio e depressão.

[....]

Acordo antes do alarme tocar no celular, e parece que duas horas de sono não foram nada. Levanto-me sem vontade e vou em direção ao banheiro jogar uma água no rosto. Nada me convence mais de que acordar é como renovar seu corpo, minha mente está sempre nos caminhos para o inferno. Se eu precisasse resumir, diria que é como sentir seu corpo arder nas chamas todos os dias, tendo que sorrir para disfarçar sua dor. Sorrio cinicamente ao ter mais uma vez esta reflexão em mente. Já se tornou costume fingir.

Visto uma roupa e decido não ir ao curso, como já fiz muitas vezes... Já desisti de inúmeras coisas que eram o topo do meu mundo, por não ter mais ânimo de ver a luz do sol. Trancada em casa é o jeito que eu mais gosto de estar, isolada das pessoas e da necessidade de sorrir de uma forma tão falsa que me causa nojo.

A dor constante nas costas está me dando agonia, como sempre. Mal completei 18 anos e já sofro com isso há mais tempo do que gostaria, decido apenas tomar um remédio – ou três – para aliviar. Na estante do quarto os diversos frascos de analgésicos e calmantes me dão a sensação de controle. Um controle que precisa ser estipulado, alguma forma dele, ao menos. Penso em como as coisas mudaram, como eu mudei.

Sempre fui insegura, isso é fato, mas com o tempo a neurose tomou conta de mim de um jeito que nada que eu faça consegue me convencer de que sou boa o suficiente.

Não consigo me encaixar no mundo, não consigo me sentir parte de algum grupo. Eu sempre fui apenas a esquisita, que sorri e parece feliz demais, mas tem um lado sombrio que as vezes é visível até no sorriso. Clichê... Sim, posso até ver os comentários debochados sobre adolescentes frescas que acham seus problemas mundanos o apocalipse.

É preferível ficar sozinha, sem ninguém te julgando sem ao menos dizer, apenas por te olhar com olhos de pena ou até mesmo de repulsa, plenamente preconceituosos à ideia de que é preciso ser mais velho para ter tantos problemas assim.

Pareço ter culpa de ser assim? Tenho culpa de sentir o que eu não consigo impedir?

Gostaria que as pessoas soubessem ser um pouco mais empáticas, ou pelo menos não tentassem forçar uma empatia que não existe. Achando que sabem como eu me sinto, achando que sabem como eu posso resolver isso. Fico imaginando como seria se outras doenças fossem tratadas como a depressão. "Ah, você poderia só não ter um câncer". Fecho os olhos e tento acalmar o ataque de irritação que começa a se formar, minhas mãos começam a se fechar e sinto vontade de cravar as unhas na pele pra fugir desses malditos pensamentos que ameaçam despontar.

Ouço minha mãe gritando no andar de baixo, apenas ignoro e finjo que não há nada ao meu redor. O estresse que essa casa me passa é algo que nunca vou conseguir suportar realmente, minha mãe só sabe reclamar de tudo e todos. Não é à toa que grande parte das tarefas de casa quem faz sou eu, ela costuma sair muito para beber, para fumar e para usar outros tipos de coisa que eu preferia nem saber. Aliás, preferia que meus irmãos também não soubessem.

As pontadas de dor começam a ficar pesadas e decido me dopar logo antes que desista de tudo mesmo. A vontade de me matar está sempre ali me cutucando para se tornar realidade, tudo parece algo mortal o suficiente para que eu simplesmente durma e não acorde mais; parar de sentir a mesma frustração do sangue correndo nas veias, me fazendo sobreviver nesse mundo preto e branco que não consigo achar saída.

Meu coração bate no vazio, apenas por bater. Cada batida, um sopro de dor, dor por estar viva, dor por ter que aguentar o mundo me julgando a cada passo, sugando cada gole de felicidade que eu tente consumir, com a sede que persiste em mim de alguém que há muito só consegue ter o gosto amargo da escuridão. Como se a sombra sempre se tornasse maior a cada passo em direção à luz. Cansei de correr para a alegria em certo momento, e então me deitei em posição fetal, deixando as chamas negras da tristeza me consumirem.

Prisões de Papel (Em Revisão)Onde histórias criam vida. Descubra agora