Por que?

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Quando chegou, esfomeada, com o sol na cabeça, achou que sabia qual era a vontade: uma corda. Ela achou que aquele casal, ou seus pais, como diziam eles, trabalhava à tarde, então entrou pela janela, porque não havia chave e não queria chamar a atenção deles, se lá estivessem.

Foi procurar um porão na casa, que achou, e de lá, trouxe consigo uma grande corda. Depois foi à cozinha; não havia muitas coisas na geladeira, mas havia chocolate na dispensa.

"Meu", ela pensou, com convicção.

Amarrou a corda em si, abriu o chocolate e foi andando em direção ao poço novamente, passando pela janela como uma ladra vestindo pijamas.

Ela andou. E então correu. Viu cachorros correndo atrás dela, de verdade agora, e se forçou a correr mais rápido ainda. Ela já estava próxima do poço, então poderia haver alguma salvação ali depois da corrida, pois sabia, mas não se lembrava totalmente, que cachorros eram bem mais rápidos que ela.

A edificação amarela surgiu em sua visão como a salvação, chegava a reluzir e a gritar por ela: "Venha, doçura. Venha, Maria."

"Estou indo", seu subconsciente pensava. Além de seu medo daquelas feras negras de quatro patas e orelhas pontudas para cima, ela precisava. Ela pôde ouvir a polícia e a ambulância agora. Ouviu gritos de pessoas e correu mais rápido ainda, ou havia se esquecido de correr e tentou voltar ao mesmo ritmo. Quem saberia? Sua mente estava sempre voando.

Perto do poço, ela sentiu algo molhado e gelado cutucar sua perna, o que a fez se desequilibrar e aumentar a velocidade mais ainda. A cada passo, ela se sentia por mais tempo no ar, com um impulso para frente que lhe desequilibrava.

Ela bateu a perna no muro de tijolos amarelos e se bagunçou toda. Seu peso foi todo jogado para cima e a feito girar no ar. Ela estava dobrada em cima do muro, com o peso do seu corpo e o impulso a empurrando para dentro do poço. Sua visão falhou, sua audição não se permitiu escutar e seus braços e pernas falharam ao se segurar na terra firme e no muro. Sentiu a vida lhe escorregar por entre as mãos e cair num poço escuro e infindável.

Ela via tudo agora; o nada. Seus ouvidos captavam o som do vento batendo enquanto sentia no rosto o vento ardendo gelado. Ela balançava e sacudia no ar, batia contra as paredes e se ralava toda, o muro não tinha piedade contra sua pele.

O vento no seu rosto, o vazio na barriga como se sentisse todos seus órgãos sendo puxados para cima e o ar que lhe escapava do nariz, ou entrava em excesso. Todos esses sentimentos eram subjugados pelo terror e o desespero que sentia. A dor batia de dentro, sugando toda sua vontade de existir, trazendo todo seu medo numa caneca e uma pílula concentrada.

Uma vez lhe disseram que era uma princesa, se lembrou. Queriam lhe dar uma coroa de mentira.

Outra vez ela foi brincar num parquinho, sozinha. "Onde estão todos os meus amigos?", pensou naquele dia.

Também se lembrou da vez em que fez aniversário, nenhuma alma a vista. "Mas eu era linda, eu sou linda, o que eu tenho de errado?"

Pensou naquele suposto namorado: "Então tinha sim alguém!... Ele pode ter me ouvido algum dia..."

Se lembrou do céu do mais profundo azul, se assemelhava àquele buraco tenebroso e infindável.

E no meio do céu, ela bateu. Ela se chocou e quebrou. Cada osso esmagado, ela se espatifou numa rodovia, derramando e espirrando sangue. Seu casaco e seu pijama, encharcados. O que restava dos seus cabelos negros, agora cobria seu rosto amassado e ensanguentado, desfigurado.

Ali embaixo, o barulho de qualquer coisa lá de cima, era mudo.

Ali embaixo, havia um céu claro, quase branco.

Ali embaixo, o fundo do poço se estendia para todos os lados, como se passasse por duas quedas e houvesse uma cidade. Como se houvesse vida, uma estrada para um novo e velho mundo.

Ali embaixo, onde numa rodovia jazia o corpo espatifado de uma jovem morta, ali embaixo, era onde o sol se punha.

AcordadaWhere stories live. Discover now