Capítulo 3 - E que diferença faz?

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Primavera de 1904, casa de campo dos Wheaterly em algum lugar no condado de Kent, Inglaterra.

Harry não aguentava mais puxar folhas secas com um rastelo, os músculos dos braços já ardiam e ele não sabia se era por causa da atividade ou do sol da tarde que queimava impiedosamente sua pele.
O dia estava claro e bonito, e naquela manhã ele havia sido acordado pelo canto dos passarinhos ao invés da voz suave de sua mãe. Sentia-se bem quando saíra de casa; havia comido pão fresco com um pedaço de queijo e uma xícara de chá quente. O sol estava tão brilhante que quase o cegara de primeira, mas seus olhos se acostumaram rapidamente. O pai precisara ir á cidade e então ele concordara em ficar com o trabalho do dia. Achava que não seria nada demais, mas o pai deixara uma lista enorme de tarefas: alimentar e escovar os cavalos, molhar todas as plantas, aparar as flores mortas dos vasos, colher as frutas maduras, rastelar a grama e arrumar o jardim.
O rapaz deixara o trabalho mais pesado para depois do almoço, no entanto se arrependera no momento em que o calor do sol bateu-lhe na nuca.

Como um bom trabalhador, Harry sempre começava a trabalhar com vivacidade e o desejo de terminar e cumprir seu objetivo lançava energia ás suas veias, mas naquele dia, depois de um tempo com o rastelo, o desânimo tomou-lhe conta. As extensões dos gramados do sítio eram largas e as folhas, flores e frutos caídos tinham feito um estrago razoável. Harry precisava juntar a sujeira e voltar para descartá-la, e fizera em tantas viagens que as pernas começavam á ficar pesadas.
Enquanto trabalhava, Harry tentava manter longe os pensamentos gananciosos e ingratos. Sabia que ao se tornar caseiro do Sr. Wheaterly, o pai havia garantido á ele e a mãe muito mais conforto do que a maioria de seus iguais conseguia oferecer ás suas famílias. Era sempre ano de crise para as classes mais baixas, mas eles ainda tinham trabalho fixo, moradia e comida. Dinheiro pouco importava, para os pobres já era grande felicidade ter como sobreviver. E Harry sabia que deveria agradecer aos céus por ter nascido um dos sortudos, mas também teve a oportunidade de conhecer o outro lado. Conhecia Isabelle e seus pais, conhecera os primos dela de Londres e havia estudado com alguns garotos mais afortunados, e conhecia aquelas conversas sobre férias em lugares exóticos, planos para faculdades, roupas da moda e o teatro na cidade. Esse tipo de extravagância era uma realidade muito distante para ele, mas ele sabia que existiam. E por vezes imaginava como devia ser viver como alguém igual à Isabelle, sem rastelos, com carne na mesa todos os dias e tamanha dignidade diante da sociedade.

Harry enfim transportava a última viagem de sujeira lá para baixo. O cheiro podre de frutas e o odor doce das flores causava-lhe nós no estômago. Estava sedento por um copo d'água e um banho.
Quando enfim terminara o dia de trabalho, Harry caminhava para lá e para cá guardando as ferramentas que havia usado, deixando tudo em seu lugar novamente. Depois se aproximou da casa principal, mais precisamente na parte de trás da casa já que raramente ficava muito tempo por lá, ainda menos nos lugares onde podia ser visto com facilidade.
Inclinou-se no tanque onde a mãe lavava roupas e girou a torneira. Água morna jorrou em suas mãos, ele esfregou uma palma contra outra e a água que pingava de sua pele e descia pelo ralo era suja, de um tom marrom avermelhado.
Já com as mãos limpas, ele fechou-as em concha e usou para beber goles da água da torneira. Foi como molhar areia e ele se sentiu mais fresco imediatamente, embora ainda tivesse toda aquela sujeira grudada em sua pele, teria que tomar um longo banho para que tudo saísse. Jogou um pouco de água no rosto, fechou a torneira e olhou-se no pedaço de espelho quebrado que a mãe pendurara ali alguns anos antes. Através das manchas do vidro e a poeira ele viu seu reflexo; o rosto estava profundamente bronzeado, talvez até vermelho demais, e embora a água pingasse por seu rosto ainda sentia-se encardido. Estava começando a parecer mais com seu pai do que com ele mesmo, ou quem ele fora antes. Tinha mãos grandes e ásperas, pele queimada, o último botão da camisa aberto, um suspensório velho e uma expressão cansada demais para um rapaz de vinte e quatro anos.

Harry se afastou do espelho ainda com água pingando do rosto e secando as mãos nas calças. Estava pronto para dar meia volta e retornar á casa, onde poderia tomar um banho e esfregaria sujeira para longe de seu corpo, depois a mãe prepararia uma refeição satisfatória e ele dormiria como um bebê. Tinha certeza de que dormiria a noite toda naquele dia. No entanto, ele ouvira vozes femininas vindo da casa e até onde sabia a mãe não tinha o costume de falar sozinha.
Ele caminhou até a janela mais próxima e espiou pelo vidro. Não vira nada na cozinha, mas vozes ecoavam por toda a casa e ele podia ouvir com clareza. Apesar dos negócios do Sr. Wheaterly proporcionar-lhe dinheiro suficiente para comprar os mais diversos tipos de decoração, o interior da casa era tão minimalista que as conversas tornavam-se sempre ecos.

Primeiro o rapaz ouvira uma voz feminina desconhecida, depois ouvira outra que, potencialmente, era a da Sra.Wheaterly, embora ele não tivesse certeza. As vozes pareciam excitadas e confusas e ele conseguia entender muito pouco.
Sentia-se envergonhado por estar á ouvir a conversa da Senhora da casa e estava prestes á se afastar quando ouviu uma gargalhada conhecida. Com esta não havia dúvidas, esta risada já fora o motivo de muitas das suas próprias e ele quase podia ver o sorriso que a acompanhava. Sem pensar, inclinou-se para a janela novamente.

- Conte-nos mais, Izzy! - disse uma das vozes desconhecidas, esta era fina e delicada.

- Garotas, façam menos barulho, por favor! - bradou a Sra. Wheaterly.

- Conte, Izzy!

- O que querem saber?

Ao ouvir claramente a voz suave de Isabelle, o coração de Harry disparou.

- Como vocês se conheceram?

- Ora, mas já contei essa história. -uma pequena pausa- Conheci-o em um jantar a que fomos convidados. Ele é um dos estudantes de Oxford.

- Um intelectual! - outra voz feminina comentou com entusiasmo.

- O mais importante não é onde se conheceram ou onde ele estuda, mas sim que finalmente estão noivos. - disse a Sra. Wheaterly - Minha única filha finalmente está noiva.

Harry quase sentiu os joelhos bambearem , mas podia ser apenas resultado do árduo trabalho que fizera a tarde toda. Com as pernas pesadas ele se afastou, o coração batia descontrolado e o rapaz podia sentí-lo quase na boca.

Isabelle estava noiva ou ele apenas ouvira mal?
No fundo, sabia perfeitamente que os ouvidos não haviam falhado, mas não podia deixar se fazer á si mesmo esta pergunta petulante.
Harry olhou para o mesmo céu que amanhecera tão azul e ao qual ele planejava agradecer antes de dormir - havia pensado muito sobre sua condição de vida e em como lhe faltava gratidão. No entanto agora, encarando os últimos raios de sol atravessarem as nuvens, rogava á Deus, ao céu e as estrelas, que tivesse apenas ouvido mal,

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