Capítulo 1

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De uma coisa eu tenho certeza, você será mais um dos meus fantoches.

Caminhava pelo corredor do hospital, o jaleco já encardido contrastava com o ambiente extremamente branco. Era a nova ala hospitalar, onde milhões correram por fora para os bolsos de alguém. O restante do hospital ruía aos poucos, acompanhando a deterioração dos seus hospedes. O enorme prédio era o zelador, e nós, seus eternos funcionários.

Saía da maternidade, a madrugada sondava os moribundos. Quem seria levado aquela noite? Espero que nenhum dos meus pacientes. Preencher um atestado de óbito sempre me deixava angustiado. Não pelo ato de sintetizar em poucas palavras o triste fim de um desconhecido. Mas pelo medo dos advogados, que como abutres, rondavam o perímetro hospitalar.

Por semanas estava de olho em um maqueiro, era ele branco, cabelo castanho claro e olhos marrons. Ao contrário dos demais, não era musculoso, seus traços suaves não o tornavam um destaque. Embora tivesse chamado a atenção de outros funcionários que, como eu, perdiam-se em um corpo masculino. Era tarde, e o silêncio imperava. O quarto dos acadêmicos ficava longe do meu atual setor, o que me obrigava a cruzar parte do hospital. Corredores e rampas sem fim, vazias e banhadas por uma luz fria, nada aconchegante. Onde estaria a tal humanização prometida?

Deitado em uma maca dura, de colchão velho e lençol áspero, me peguei pensando nas possibilidades para aquela noite. A qualquer momento eu receberia uma ligação que me levaria de volta para o centro obstétrico. Gestantes e suas infindáveis contrações. Quem sabe quantos minutos ainda me esperavam? Fechei os olhos, mas não dormi. Estava elétrico. Talvez fosse hora de perder mais um pouco de mim, e me entregar aos desígnios deste dom.

Pulei da cama e atravessei ligeiro os corredores. A mesa dos maqueiros ficava localizada na entrada do pronto atendimento. O frio noturno castigava aqueles homens. Passei por eles em silêncio, as mãos repousavam nos bolsos do jaleco. Uma postura nada profissional, ainda que charmosa. O alvo estava sentado ao lado de um colega, conversavam sobre os dias de folga que teriam naquele mês. Foi então que, o tímido rapaz estremeceu, era tarde para ele. Sua boca não mais correspondia ao falatório do outro profissional. Estava tomado por uma força que não compreendia, seus pensamentos tornavam-se nulos. Levantou-se e me seguiu. O colega observou confuso, enquanto desaparecíamos pelo labirinto de leitos. 



Observação: Sejam bem-vindos, leitores! Aguardo feedback de vocês. Qualquer comentário é válido e enriquecedor para mim, escritor.

DevoradorWhere stories live. Discover now