Capítulo 6

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O paciente há meses terminal continuou da mesma forma. Por vezes tentei ordenar que aquela alma se desprendesse da carne fria e oleosa. A esperança numa recuperação que jamais ocorreria fomentava sua teimosia. Os parentes não mais o visitavam como outrora. A equipe tornava-se, aos poucos, os últimos a se importarem com ele. E eu, visto como bom médico, fazia-me de humano sentado ao seu lado. Teria ele consciência das minhas motivações? Talvez partisse antes dele. Ninguém compreende as repercussões de tamanha habilidade. Meu corpo sofria em consequência do declínio da minha saúde mental. Definhava como criatura social. Agir como um humano qualquer se tornava, a cada novo dia, um ferrenho obstáculo. Tanta atuação acabaria por me render um Oscar.

— Eu nunca vou entender o que traz aqui todo santo dia, doutorzinho. Vocês não são de se apegar assim com os pacientes. E nem família você é!

— Só me compadeço da situação dele. Preso dentro do próprio corpo. Deitado nesse quarto abafado, sem companhia, sem interação com o mundo externo. Qual o problema de sentir empatia?

— Se é o que senhor diz. Tá bom, não vou contrariar.

Aquele enfermeiro ainda teria a possessão que merece. Deixo o depósito de paliativos e subo para o andar da renovação. Gestantes, puérperas e recém-nascidos. As paredes não mais eram amareladas. Cores vivam ganhavam os quartos. Desenhos infantis e floridos estampavam os corredores. Um outro mundo, completamente alheio ao sofrimento dos que ficavam abaixo. Adentro o centro obstétrico, meus serviços são requisitados. Uma mulher está prestes a parir. Luz não há, apenas dor, lágrimas, sangue e dejetos. A obstetra, uma alienígena em meio ao serviço público, estimulava a glamourização do parto. Seguia as recomendações do ministério da saúde. Com as luzes apagadas, música instrumental, e o parceiro ao lado da mulher, ela iniciou seus gritos de dor. O homem nunca antes a tinha encarado tão fixamente. Temia olhar a vagina da esposa, e nunca mais tirar da cabeça aquela imagem. Éramos, somente, animais em meio as bugigangas.

Os gritos só aumentavam, mesmo com as sugestões de quem segurasse para si todo o ar de seus pulmões. Engraçado como as enfermeiras e médicas se contradiziam. Na frente das pacientes incentivavam o parto vaginal, em suas rodas de conversa, vangloriavam as próprias cesarianas. Eu apenas escutava a tudo. O mundo não me era habitual.

— Cadê o acadêmico? Mandem ele sentar aqui na cama, a paciente precisa apoiar os pés para fazer força.

De futuro médico a encosto de pé. Engoli meu orgulho e me sentei. Desejava não sair dali com as vestes encharcadas de líquido amniótico, urina, sangue e fezes. Não só de status vive a profissão. Olhava o canal se dilatar com certo receio. Se algo espirasse dali, eu seria o primeiro a abandonar o navio. Minhas pernas estavam prontas para uma fuga iminente. Os minutos se passavam e nada do recém-nascido ser parido. Talvez fosse hora de domar a parturiente e assumir seu trabalho de parto. Os olhos se reviraram por um instante. Eu continuava imóvel, tendo o pé dela apoiado na minha coxa esquerda. Os gritos cessaram. A respiração assumiu um ritmo constante. A força de empuxo apenas era realizada durante as contrações, evitando assim o desgaste da futura puérpera. Em menos de dez minutos estava ela largada sobre o leito, com o filho repousando em seu colo materno. Então levaram-no para longe. E ela pode descansar sem ser julgada. O parto causara nela uma laceração, caberia a mim suturá-la. Ambos saímos ganhando, afinal.

Retorno a sala dos médicos e me deparo com um relato nada ético sobre um empalamento. Todo hospital possui os seus. O deboche pontuava cada novo comentário. O sujeito tornava-se uma piada enlatada, que seria, por tempos a fio, recontada pelos cantos do hospital. Talvez fosse hora de educar alguns profissionais. 

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⏰ Last updated: Jul 31, 2018 ⏰

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DevoradorWhere stories live. Discover now