TRÊS

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"—Ele... Marcele!"

Abri os olhos lentamente, levantando meu rosto do travesseiro.

"Hmmm", fiz num tom preguiçoso. Forcei as sobrancelhas e puxei a coberta para cobrir minha cabeça.

"Marcele!", ela tentou outra vez — e daquela eu consegui identificar todo o nervosismo na voz da minha irmã mais nova.

Estalei a língua. Apoiei o peso do corpo nos cotovelos e me voltei para ela. Tam. Alta, atlética, cabelos de um castanho bem claro e fios bem finos, leves como sua consciência de mulher perfeita deveria ser.

"O que é?", perguntei com amargor.

Atrás dela, através da porta aberta do quarto de hóspedes — que eu usava já há sete anos e que provavelmente já tinha virado o quarto da Marcele — eu via a decoração elegante da casa de Tâmara. No corredor, uma imensa coruja Suindara parecia me observar com olhos de rapina... dentro de um quadro, numa pintura.

Levantei com um salto, meus olhos arregalados.

"Que porcaria é aquela?", perguntei, apontando para o quadro.

Tâmara levantou uma sobrancelha, me olhando como se eu estivesse gritando em praça pública sobre o apocalipse. Ela abriu a folha de papel em suas mãos e seus olhos correram as linhas com uma velocidade impressionante.

"O quadro de um pintor que eu entrevistei semana passada", ela respondeu simplesmente, bebendo um gole de seu café. No final da frase eu notei uma pequena ruga de preocupação entre suas sobrancelhas.

Soltei um suspiro comprido, me sentando na cama.

"Tive um sonho bizarro ontem", murmurei. "Com uma coruja."

"Uhum", ela respondeu, desinteressada. "Depois 'cê me conta. Só vim te chamar pra 'cê não se atrasar pro trabalho outra vez", disse num tom distante, já girando nos calcanhares.

Fiquei em silêncio. Ao invés de me levantar, sentei na cama e puxei as pernas mais para perto, os olhos baixos.

"Bom", comecei. "Tenho uma história engraçada. Com um gato, uma velha e um elevador. Quer ouvir?"

"Na verdade não, Marcele", Tâmara respondeu distante, bebericando o café.

"Vou pular pro final, então", continuei. "Quando eu digo e por isso eu não preciso mais me preocupar com o horário! Porque... eu fui demitida ontem."

Minha irmã sequer hesitou.

"De novo?" A falta de emoção ou surpresa em sua voz foi o golpe final para a minha auto-estima. Ela continuou: "Mas não foi de todo mal, Marcele. Aquela sua chefe te pagava muito pouco, era quase ultrajante."

"Ei! A Raquel era uma ótima chefe — e ela não era a pessoa decidindo meu pagamento. Na verdade..."

"Isso. Ela era sua chefe", minha irmã respondeu, ainda de costas. Seu silêncio depois daquela frase tinha um significado adicional.

"Bom, dinheiro não é tudo, Tâmara. Ela sempre foi justa comigo e muito decente. E ela me ensinou coisas! Além disso —"

Tâmara me interrompeu: "Marcele... o que você fez pra receber a merda de uma citação?" Ela se virou para me encarar. O assombro em sua expressão fez algo gelado girar em meu estômago.

"Citação?", perguntei.

Minha irmã jogou o papel bruscamente no meu colo e inspecionou o envelope com cuidado.

"É. Essa merda de papel aí, que o tribunal está usando pra te chamar pra um processo judicial!" Ela suspirou, exasperada. "Aonde fica a... avenida Corvinae?", perguntou, estreitando os olhos. "Primeira vara de Interação entre Humanos e Outros seres de São Paulo? Que brincadeira é essa? Ou é um novo tipo de ONG de proteção aos animais?" Tâmara franziu muito as sobrancelhas e baixou a voz, seu olhar perdido entre as peças de roupa jogadas no chão. "Também pode ser algum fã maluco que começou a te perseguir pra chegar a mim. Quem te entregou isso, Marcele?"

Assassinato no Mundo das Fadas (Completo)Opowieści tętniące życiem. Odkryj je teraz