seis da manhã

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Eu me permito cinco minutos a mais.

Estou boiando no centro do oceano atlântico. A água é cristalina, mas não se pode ver o fundo. Eu não me movo. Nem um centímetro. Estou boiando na água parada, imóvel feito um cadáver.

O mundo é completamente silencioso. O mar cobre meus ouvidos. Não existe um único som para romper a película mística que cobriu a atmosfera sonora. Só silêncio, e, muito raramente, o sussurro do sangue correndo pelo meu cérebro. É um tipo de música, um canto longo e obscuro. Mas é raro. E não quebra o silêncio, porque mesmo sendo um som, essa canção de ninar é um tipo de quietude.

Estou quase adormecendo. Abaixo de mim, o frio macio da água, com promessas de inocência infindável no fundo turvo do oceano. Gélidos dedos traçando o contorno das minhas costas com cuidado, como se reverenciassem cada mínima curva do meu corpo. Não consigo ver, com meu rosto virado para o céu, mas imagino o brilho sedoso e multi-colorido da água, e devaneio sobre um cintilar hipnótico e divino que presta culto a mim. Devaneio sobre esse ser onipotente e poderoso, esse deus perfeito e inabalável, esse Eterno sobrenatural que cultua e adora apenas a mim. Sou alvo desse canto marítimo e desse toque que verena; sou a amante de um deus e sou o deus de uma civilização. O mundo é quieto e lento, e me sinto escorregando para os braços macios de Morfeu.

Minhas pálpebras pesam sob o sol. Não há uma única nuvem no céu. Acima de mim, o azul se estende em uma nudez impressionante. No zênite, é de uma recheada cor, que de desintegra lentamente enquanto escorre pelo firmamento virando um quase verde-limão. Eu o amo, o azul. Sua luminosidade lembra papel manteiga — não tem dedos para cutucar, apenas uma única massa morna que se deita homogênea sobre o mundo. O céu não tem morais, nem pudor, nem se esconde atrás de ondas. Ele inspira e expira lentamente, despreocupado sobre mim, descendendo em seu próprio tempo. O céu pinta inocência e pureza da forma mais depravada possível. Se eu manter minhas pálpebras em uma posição específica, posso quase vê-lo tremular. Mas isso é ilusão de óptica.

Não me mexo, nem mesmo um centímetro. A água fecha meus ouvidos e o dia clareia meus olhos. Se eu alterar minha posição, descenderei ao fundo mar. À obscura noite de uma constelação submersa onde nada acontece e o tudo mora, onde sou esposa de uma divindade e dona de um universo. Sou uma estátua, boiando sob um céu perfeito, sobre um mar pecador. Me permito afundar na verdade letárgica do céu, genuinamente espiralar para dentro de suas promessas cruas. Nadar pela neblina densa, me permitir absorver pela cor em degradê. Mas eu não me movo. Não invado a abóboda do mundo. Apenas autorizo que me engula.

Os cinco minutos acabam. O mar se dissipa. O céu deixa cair sua luz. Solto um longo suspiro enquanto sinto a água do mar abandonar meus ouvidos e o confortável calor do papel manteiga celestial evaporar de meu rosto. Meu quarto está escuro. São seis e vinte e cinco da manhã. Bom dia.

sobre todas as coisas que os tolos chamam de arteWhere stories live. Discover now