Natalítica

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Era véspera de Natal. Minha mãe e eu deveríamos estar em casa, arrumando e preparando tudo para o nosso Natal em família. Mas, ao invés disso, estávamos na casa de outra pessoa, limpando e ornamentando o ambiente para o evento natalino de uma família com a qual nem tínhamos tanta proximidade. Uma família engomadinha e acostumada a receber tudo nas mãos. Uma família muito conhecida na cidade minúscula onde eu morava. Uma família onde todos traíam todos, mas tinham dinheiro pra concertar tudo.
Sim, eu estava mais do que revoltada. Não deveríamos estar naquele lugar. Minha casa, meu pai, minha avó e até meu gato precisavam da gente a alguns minutos dali, com eles, na porcaria do Natal que eu achava tão importante. Seria o momento de conversarmos, de pôr tudo em ordem. Utilizando esta data simbólica como pretexto, poderíamos começar de novo, antes mesmo do Ano Novo.
Eu tinha planos. Faríamos um jantar — não tão grande e farto quanto o daquela família seria, mas pelo menos seria de coração —, enfeitaríamos a casa, e nos reuniríamos à meia noite para trocar os presentes. Eu havia pensado em presentes bem melhores do que aqueles objetos comprados sem o mínimo de carinho que rodeavam a árvore de Natal enorme na casa do patrão da minha mãe. Os nossos presentes seriam elogios. Cada um de nós falaria sobre tudo o que amava no outro. Seria perfeito, nos lembraríamos porque continuávamos todos juntos e voltaríamos a ser uma família estruturada.
Mas não. Fui inteiramente arrancada de meus planos quando minha mãe me contou que o patrão dela precisava da gente lá.
"Precisava". Revirei os olhos. Ele precisava mesmo era de um balde de vergonha jogado bem no meio daquela cara mesquinha por estragar os planos de uma jovem e deixá-la em um nível extremo de indignação.
Fiz cara feia para as câmeras que me acompanhavam em todos os lugares daquela casa.
— Odeio você! — Falei, olhando nos olhos da câmera, se é que isso é possível.
— Odeia quem? — Meu peito gelou. Era a voz dele.
Me virei, só para dar de cara com Heitor, O Desgraçado.
Ele era um cara alto e fisicamente bonito em seus trinta e poucos anos. Tinha cabelos pretos e olhos da mesma cor, não tinha uma gordura sobrando — o que uma academia não faz? —, e sua pele era de um moreno escuro e bonito. Tudo isso era motivo suficiente para que meu ranço fosse maior. Não bastava ter nascido em família rica e bem falada, tinha que ser enxarcado de beleza também. Esse povo realmente não se contenta com pouco.
— E então, Júlia, quem é que você odeia com tanto fervor? — Perguntou ele, com um sorriso irritantemente perfeito dançando nos lábios.
Inevitavelmente, comecei a gaguejar.
— Ahn... E-eu?... E-eu odeio... A vassoura! Isso, a vassoura! Ela tá ruim demais pra varrer. — "Mas é uma companhia melhor que você, sai.", pensei.
Ele arqueou uma sobrancelha.
— Sabe que é só pedir uma nova, se precisar.
Foi difícil não revirar os olhos com aquele papo de "se quiser, eu posso comprar".
— Não precisa. Até vassouras merecem uma segunda chance.
Ele riu.
— Você é inacreditável.
Inacreditável era ele continuar falando comigo enquanto eu tinha trabalho a fazer.
— Inacreditavelmente ocupada, inclusive. — Apontei para o piso cheio de restos de madeira cerrada. Eles estavam querendo que a árvore fosse de verdade esse ano.
Heitor fez cara de quem entendia.
— Sinto muito por estar dando tanto trabalho pra você e sua mãe. — Ranço daquela cara de bebê em plenos trinta anos era tudo o que eu conseguia sentir.
— Imagina — eu disse. — Você tá pagando, então não é tão incômodo.
Ele riu.
— Sempre admirei sua sinceridade.
Soltei um sorriso falso, que ele deveria ser esperto o suficiente para receber como um recado para se mandar dali.
— Bom, tenho que ir buscar minhas irmãs agora, então até mais tarde. — Acenou com a mão, ainda com aquele sorriso irritante estampado na cara.
Retribuí o aceno, pensando que ele poderia muito bem se perder no caminho de volta.
Soltei um grunhido. "Que cara chato!", pensei.
— Tão chato que você gosta dele desde quando estudavam juntos. — Minha mãe surgiu, mostrando que eu tinha pensado um pouco alto demais.
— Nós não estudamos juntos, mamãe, só estudamos na mesma escola. Ele fazia o ensino médio, enquanto eu ainda estava no fundamental — momento também conhecido como pior fase da minha vida —, e eu não gosto dele! A senhora sabe disso. — Olhei feio pra ela.
Ela riu.
— Ah, claro. É por isso que você fica toda vermelha quando ele aparece. — Ela apontou para o meu rosto.
Automaticamente levei a mão até ele. Droga de pele pálida!
— Fico vermelha devido ao profundo ranço que cultivo por essa pessoa... Extremamente irritante. — Era isso. Apenas isso.
— Belas palavras. Mas eu trocaria "ranço" por "recalque". — Ela tinha um sorriso brincalhão no rosto.
Fiquei de costas para ela e comecei a varrer.
— Pobre mamãe, a senhora está começando a ficar senil. Deve ser efeito de tanto trabalho que ele coloca nos seus ombros idosos.
Como previ, ela riu. Minha mãe não tinha nada de idosa, apesar de já ter seus 52 anos, e sabia muito bem disso.
— Você não sabe brincar, Júlia. — Deu mais um risinho até se fingir de séria. — E eu realmente não entendo porque você é tão dura com ele. Heitor é sempre tão simpático.
— Pff! Tudo cena, mamãe. E é justamente por isso que não o suporto, porque ele é um fingido.
Ela apertou os olhos.
— Engraçado. Eu jurava que ainda era por causa do bolo que ele deu em você no baile de Natal de 2008. Mas fico feliz que você já tenha superado.
Ela disse isso e foi andando na maior cara de pau.
Esse Natal vai ser difícil. Difícil não, impossível.

Contos natalinosWhere stories live. Discover now