Sempre o gato

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Onde eu tô?

Cama....

Luz. Meu quarto?

Tava dormindo. Foi só um sonho, tá tudo bem.

Fecho os olhos com força e viro para o outro lado tentando escapar do campo de luminosidade que se força entre as aberturas da persiana. Eu tinha que alugar o apartamento na frente do poste de luz. Sinto o colchão afundar próximo ao meu corpo, o lençol é repuxado. Meu coração aquece. Amar cachorros é muito fácil, são devotos aos donos instintivamente, mas com gatos o afeto é conquistado, então quando a Brisa aninha seu corpinho em mim sou tomada por uma onda de carinho.

Ela está bem pesada na verdade. "Não pode deixar ração a vontade para ela, a que tu comprou é de boa qualidade, lê no rotulo as porções recomendadas pra idade. Uma vez por semana patê porque gato não costuma tomar água suficiente, só com a ração seca ela pode desenvolver problemas no trato urinário. Aproveita que ela ainda é jovem e introduz na dieta dela frango, peixe, carne vermelha sem sal ou tempero, pouca gordura. Gatos são neofóbicos, não aceitam muito bem coisas novas e preferem carnes mas pode dar pra ela também..." é, não lembro do que mais a veterinária disse na primeira consulta quando eu a enchi de perguntas.

Eu sei que não devo deixar ração sempre no pote, mas eu não posso deixar a gata passar fome, tadinha, mas a veterinária disse.... Vou levar ela daqui a duas semanas pra vacinar, aproveito e pergunto do peso, se for necessário eu limito o tempo de alimentação, fazer o que?

Jogo meu braço por cima do lençol em busca de seu corpinho peludo, farei carinho entre as orelhas e ela irá ronronar.

Mas eu não consigo toca-la. Em resposta aos meus movimentos pula para o meu pé, consigo sentir através do tecido as pontas de suas garras afiadas – até demais –, que destroem o meu sofá cada dia mais. Desde sua chegada nada mais de fios de eletrônicos a mostra, espelhos bem firmes, todas as janelas com telas – impedindo que ela saia ou qualquer outro animal entre, ainda bem, já tive problemas demais com os morcegos dos prédios velhos –, mas uma exaustiva recomendação não segui: não encapei o sofá – aparentemente muito mais divertido que os arranhadores nada baratos – com aquele tecido que me disseram, qual era o nome mesmo?

Pega leve, Adriana.

Que merda! Tá realmente me doendo, não passa de amanhã e eu corto. Ela não precisa, só vive dentro de casa. Quando me viro para espanta-la, algo em cima da do meu armário atrai meu olhar, mas minha pupila ainda dilatada não me permite ver realmente.

Que porra é essa?

Sinto meu coração acelerar. Dois pontos luminosos, olhos (?), me observam.

Luz!

Ligar a luz. Vou ligar e ver que não é nada. Talvez uma boneca de quando era pequena, aquelas com os olhos de vidro. Mas doei todas. Eu acho. Tem tanta tralha lá em cima, poderia ser.

Meu corpo não me obedece, fico ali sem coragem para mexer uma falange, tentando me convencer de que é um medo sem motivo.

E se eu tentar levantar, chamar atenção e aquilo vir para mim? O que eu faço agora?

Tá se mexendo, meu deus.

O pavor congela todos os meus pensamentos.

Aqueles dois pontos insinuam-se para a zona de penumbra. Bigodes, um focinho rosa, uma boca com a ponta da língua de fora, os olhos, as orelhas da Brisa.

Meu corpo é tomado por uma onda de alívio. Volto a respirar sem nem mesmo perceber que em algum momento parei. Eu me cagando de medo e era só a minha gatinha, sou muito ridícula, puta que pariu.

Meu coração para.




Notas da autora:

Ter gatos é parar de temer assombrações. Um barulho estranho na sala? Foi o gato. Algo caiu sozinho? Foi o gato. Senti alguma coisa no meu pé? O gato. Sempre o gato.

Conto inspirado numa noite em que minha Ariel quase me matou de susto.

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Você é do time dos gatos ou dos cachorros? Nesse debate eu estou no muro.

SOTURNIDADE: Histórias de TerrorWhere stories live. Discover now