Numa vida de algarismos, o dia em que ele próprio se tornou um

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Ele existiu. Sem dúvidas, existiu. Carteira de trabalho, registro de nascimento, carteira de identidade número zero-zero alguma coisa, carteirinha de ônibus com foto surrada... holerite com valor líquido de R$ 480,00. Crachá com uma foto azul em nome de uma empresa qualquer. Ele tinha um número no crachá. Era o 1802. Entre mais de mil funcionários, ele era o 1802... havia os históricos escolares: notas não muito altas; não muito baixas. Um desempenho mediano... Inscrições do Enem existiam muitas, apesar de não ter passado em nenhuma prova, apesar de nunca ter sentido a alegria de ver o nome na lista de aprovados (também em números)... Havia notas fiscais das mais variadas: talões de água, comprovantes de pagamento do cartão transporte, o cupom fiscal do primeiro computador (Que lembrança! Foi um dia importante aquele). Havia a foto de uma mulher seminua escondida entre os livros também. Era a musa de uma série famosa, mas que agora ninguém se lembraria. Ela usava maiô e estava bastante sedutora. Havia mais certidões, comprovantes de pagamentos do seguro desemprego. Holerites, muitos! Perdiam-se de vista. Todos muito específicos, com descontos por dias faltados, horas que foram batidas a menos; horas a mais (agora ele teria todo o tempo do mundo).  Contas também existiam das mais variadas: luz, água, telefone, gás e um imposto sobre algo que ele, em vida, nunca havia entendido direito. O dinheiro ia pra alguém. Talvez vivo, talvez não mais. Números de protocolo também eram dos mais variados. Zero-zero isso, aquilo e tantos mais. A carteirinha do SUS também estava lá. "Favor comparecer às 06:00 horas para retirar a senha", podia-se ler no documento. "Senhas limitadas para 100 pessoas por dia"... Havia o número da casa dele também: um número estável, que nunca havia mudado. Podia ser que os números das casas nunca mudassem... agora, certamente, isso não importaria mais. Compras no supermercado, número da placa do primeiro carro, número do protocolo do departamento de trânsito, número da senha de atendimento disso, daquilo. Pro inferno com tantos números! Danem-se os números. Agora ele próprio havia se transformado em um número — era o novo algarismo do registro de óbitos do governo. Mais um... um número que existiu.

Crônicas para flutuar no tempoOnde as histórias ganham vida. Descobre agora