Sorria para o mundo e o mundo sorrirá com você... ou de você

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Este ano seria um ano diferente! Claro que seria! Foi o que prometi na virada. Mudar de comportamento. Este seria o lema: sorria para o mundo e o mundo sorrirá para você.

Acordei mais cedo naquela segunda-feira, dia mundial da mudança. Escovei os dentes, ajeitei o cabelo e ensaiei o meu sorriso mais amigável. Prometi que passaria o dia inteiro sorrindo para as pessoas e pensaria "ok, martelei meu dedo, um carro passou na poça e jogou água na minha cara, mas... tá tudo bem". A martelada faz com que eu aprimore meus sentidos, com que o sangue circule com mais intensidade no corpo, com que o sistema imunológico deixe a zona de conforto e atue de forma mais ativa no organismo. Já a água na cara me ensina a calcular melhor a distância de consequentes fenômenos físicos, ativa meus reflexos e me torna mais sagaz e menos trouxa em dias chuvosos. "Sorria para o mundo e o mundo sorrirá para você". Este era o lema.

Almocei uma caprichada feijoada na casa da minha irmã e decidi que aquele seria o momento ideal para iniciar a mudança de comportamento. Barriga cheia, dia ensolarado: tudo conspirava para a mudança. Nada de espírito melancólico, nada de escutar Alice In Chains, Radiohead e Bon Iver. A ideia era encher a playlist com Ara Ketu e o som do Molejão. Um novo Eu, um Eu mais feliz. Freud ficaria orgulhoso. Claro que ficaria!

Parei no posto de gasolina e sorri para o frentista (um sorriso normal, note-se!). "Cinquenta reais de gasolina comum, por favor.", solicitei. E, então, o frentista correspondeu ao evento de felicidade e exclamou: "Certo, senhor!".

Senhor? Eu tinha apenas 32 anos, 4 meses, 5 dias, 8 horas, 32 minutos e 57 segundos de idade. "Como assim senhor?", pensei, mas nada estragaria o meu DIA FELIZ!

Carro com tanque cheio, estômago forrado, era hora de passar no mercado e comprar a cervejinha gelada. Ao passar as compras, a caixa, uma mocinha bem simpática e de cabelos escuros, me indagou: "crédito ou débito?". Exibi um largo sorriso e proferi em tom retumbante: "crédito, por favor". Então notei que a atendente havia ficado com as maçãs do rosto avermelhadas e com uma vontade contida de sorrir... "Será que posso arriscar uma cantada?", pensei. "Bobagem. Deve ser apenas porque fui simpático", constatei. Sorria para o mundo e o mundo sorrirá para você! Estava funcionando!

A partir dali cumprimentei todas as pessoas que vi: lojistas, garis, flanelinhas, moradores de rua, empresários, emos, hipsters, alienígenas - sempre exibindo um grande sorriso... O resultado era unânime: as pessoas sorriam de volta, algumas ficavam avermelhadas, outras até gargalhavam... "A felicidade é contagiante", pensei. "Como isso é possível?".

Enfim caiu a noite e finalmente cheguei em casa - FELIZ. O resultado havia sido satisfatório: sorria para o mundo e o mundo sorrirá de volta! Deitei no sofá e fiquei admirado repensando em todas as interações que tive durante o dia. "Basta sorrir", pensei. "Assim, tudo fica mais fácil. Viver fica mais leve". Ajeitei a cama para deitar e fui ao banheiro, precisava me olhar no espelho e constatar o novo "Eu", aquele ser tão simpático que contagiava com felicidade os ambientes por onde circulava. Lá estava eu, me olhando no espelho. Um novo "Eu". "Porra, Freud, você ficaria orgulhoso". Aquele cara no espelho era muito gente boa: era eu! O sujeito que por todos lugares onde andava  levava consigo uma alegria contagiante. Finalmente, resolvi abrir a boca e ensaiar pela última vez aquele sorriso que ficara famoso ao longo do dia. Vejamos como não corresponder aquele sorriso simpático. Sorria para o mundo e o mundo sorrirá para você! Novamente o lema. E então sorri. E foi aí que me veio a resposta para a correspondência de tanta simpatia. Entre os dentes, exatamente no incisivo lateral direito, no arco superior, ali onde é liderada a fileira da dentição, o cartão de visitas do sorriso, jazia, patente, evidente, que não deixa dúvida, a maior casca de feijão preto jamais registrada na história dos anuários de feijões já catalogados. Rotundo, expresso, caricato: em incríveis dimensões que, sei lá, deviam ter quase um centímetro quadrado. Ali, exatamente ali, instalava-se, soberana, a maior casca de feijão do mundo. E pude entender, afinal, o motivo de tantos sorrisos correspondidos.

"O mundo ainda é um lugar bom", cheguei a pensar. "Apesar disso, apesar disso o mundo ainda é um lugar bom! "Sorria para o mundo e o mundo sorrirá para você" era o lema. E o lema deveria continuar!".

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⏰ Última atualização: Jan 09, 2023 ⏰

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