Quando eu morrer

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Quando eu morrer, tirem fotos do meu corpo. Se a morte for hedionda, tirem ainda mais fotos. Publiquem as imagens na rede social. Ganhem curtidas, preencham com violência um pouco daquilo que lhes falta. Alimentem o vazio da alma. Tirem fotos, muitas fotos, quantas quiserem, porque fotos são importantes. Depois mandem-nas para o jornal. Chamem a reportagem e ofereçam os pontos de audiência. Mostrem ao público o sangue ressecado no asfalto. Se a câmera for boa, deem um close no fígado. O fígado merece um close. Destaquem também o coração e as vértebras... e não se esqueçam das vísceras, muitas vísceras, expostas, espalhadas, desorganizadas. Saciem com sangue a sede dos curiosos. Façam isso! Quando eu morrer, façam da minha morte um espetáculo. Iluminem os palcos abandonados. Quando eu morrer, ah quando eu morrer! Se eu morrer e for morte matada, violenta, catastrófica, por favor, fantasiem! Fantasiem fofocas sobre mim. Digam aos outros quaisquer bobagens dessas que se espalham rápido. Digam que fui morto por um desafeto corneado. Atingido por um tiro nas costas. Ou, ainda melhor, comentem que a donzela chorou sobre o meu corpo!... Ó, vermes da minha alma! Exclamem que o marido corneado precisou suportar a cena toda, com o orgulho jogado no lixo. Exaltem minha canalhice, agora ainda mais orgulhosa e aviltante!... Façam isso! Exultem a morbidade alheia, por favor. É tudo que peço... E, se minha sorte mudar e caso eu morra de alguma doença, inventem algo para torná-la digna. Finjam solidariedade, finjam! Mesmo que não se tenha nenhuma. Digam que fui uma boa pessoa. Mintam, porra, mintam! Publiquem na rede social. Emocionem-se com o luto de quem mal conhecem. Façam isso! Com obstinação... Façam! E façam direito... Se não conseguirem... tudo bem... sem problemas. Sou paciente... se não conseguirem, então, façam o seguinte: inventem... inventem muito: uma história imoral, a pior que puderem! Daquelas escandalosas. Enlameiem minha reputação e sujem-na com toda a sua boa vontade. Por fim, risquem meu corpo e chutem minha lápide. Profanem injúrias coléricas – cuspam na minha biografia. Façam isso, ou façam qualquer coisa..., mas, por favor, só não se esqueçam das fotos.


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Photo by Unplash Hayley Seibel.

Crônicas para flutuar no tempoOnde as histórias ganham vida. Descobre agora