O Espírito da floresta

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Da mais alta colina, no intocado Vale dos Índios, uma figura se fazia imponente em meio a grandeza do lugar. Burak permanecia quase imóvel,  ostentando sobre sua cabeça um magnífico cocar. Observava atentamente até onde a vista podia alcançar, montado num grande cavalo que exibia o branco de sua pelagem como um trunfo ganho em uma batalha. Atento ao som do vento que sibilava algo parecido com uma canção,  o índio parecia entender os sinais da natureza. O vento ficou mais forte e um redemoinho começou a se formar ao redor dele. 

Burak  não demonstrou temor, apenas deixou-se envolver pela ventania que ergueu do chão uma cortina de poeira e folhas enquanto seus olhos se fixavam na mensagem. O redemoinho cessou, mas as folhas permaneceram no ar, traçando trajetórias e intercalando-se umas com as outras até que uma figura se formou - o rosto de um homem estampava-se através das folhas-  ele sabia que era chegada a hora em que seu mundo estaria em perigo e que tempos difíceis estavam por vir. 

O homem santo fechou os olhos e abriu seus braços como se pedisse ao turbilhão que lhe contasse um segredo, que mostrasse o caminho a seguir. O índio foi atendido pela natureza, o redemoinho retomou sua força envolvendo  seu corpo e aguçando seus ouvidos para interpretar a mensagem que anunciava as boas novas. Burak ficou por lá, montado em seu cavalo, até que o vento cessasse. Quando o vento abandonou a colina, ele desmontou do cavalo calmamente e caminhou  até a beira do desfiladeiro. Sentou com as pernas cruzadas e de olhos fechados, sussurrou palavras em sua língua indígena buscando a sabedoria dos antepassados. 

O sol começava a se esconder no horizonte, quando ele retomou a montaria. O toque das rédeas fez seu cavalo girar a cabeça em direção ao Vale. O índio moveu o corpo para frente e o animal entendeu sua intenção imediatamente. Homem e animal em sinergia, seguiram velozmente por trechos de difícil acesso, saltaram pelas árvores caídas na floresta, atravessaram o rio sagrado e o local da aranha até chegar a Gungacha - uma grande extensão rochosa em formato de platô - de onde se podia observar toda a planície e sua tribo. Homens, mulheres e crianças eram abençoados por viver num mundo totalmente invisível ao homem comum, das terríveis tragédias que assolavam as cidades e dos perigos da cobiça e do poder humano. 

Burak ficou por alguns minutos observando seu povo de longe, os sons das vozes das crianças chegavam até ele como sussurros de alegria e inocência. Mas seu rosto se fechou num olhar crítico e preocupante. Respirou profundamente e em seguida conduziu o cavalo a descer de encontro ao Vale. Todos se alegravam ao ver Burak, outros índios o aguardavam para lhe saudar e cuidar do animal cansado da travessia. Os homens se curvaram num tipo de reverência enquanto o Pagé saltava do cavalo. 

Ele caminhou com passos firmes até uma das cabanas, onde uma velha senhora prestava sentinela em frente a porta. Seu nome era Betê-Querê.  A anciã o recebeu com um sorriso tímido, abrindo espaço para o homem santo.  Ele entrou na pequena cabana e aproximou-se de uma cama  produzida com  madeira da floresta,  sentou-se no colchão de  galhos e folhas revestidos de um tecido grosso feito de pele animal. 

Betê-Querê deixou escapar um olhar de curiosidade, a velha senhora ajoelhou-se e colocou os pés de Burak numa grande bacia de barro com água fria começando a massageá-los. — Ele conseguiu chegar ao seu destino, — disse Burak — precisamos guiá-lo para encontrar a Shagma Sagrada,  uma guerra está se aproximando Beteq, e ele corre grande perigo.  

A mulher ergueu os olhos em direção ao índio e fez um sinal com a cabeça, começando a cantar algo próximo a uma oração. Burak acompanhou a velha senhora em seu cântico e o som poderoso e envolvente se espalhou por todo o Vale dos índios.


Enquanto isso num futuro distante...

A explosão quase me cegou. Fui lançado ao mar junto com a caminhonete.  Pouco antes de desabar sobre a água,  um grito rechinante e profundo se misturou com o som de asas em desespero e fuga  - um pássaro também havia sido transportado. 

A  energia emanada no transporte ainda ressonava nos meus tímpanos  Com o impacto avancei vários metros em direção ao fundo do mar, o que me obrigou a despender de um grande esforço físico para subir até a superfície. Quase sem fôlego, busquei oxigênio respirando pesadamente. A água fria me despertou os sentidos, e tive que aguardar até que meus batimentos cardíacos voltassem ao normal para olhar ao redor. 

Tentei manter a calma, mas a minha cabeça estava zunindo e mesmo depois de tudo que aconteceu eu ainda não estava preparado nem convencido que poderia andar sobre a água.
A praia estava próxima, juntei forças e comecei a nadar. Meu único objetivo era chegar até a orla. Parei por diversas vezes devido à exaustão, até que a areia da praia me recebeu de braços abertos. Caminhei cambaleante até uma parte de areia seca, desabei sobre o solo adormecendo ao som das ondas.

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