Samanta Tifelli

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Meu corpo tremia, em uma mistura de ansiedade, alegria e medo. Não sabia o que aconteceria em seguida. A liberdade tinha um preço alto para mim. Dirigi na estrada vazia por uns quinze minutos. Decidi parar no acostamento para ver o que havia no carro. Encontrei algumas peças de roupa no banco traseiro. Troquei-me em um improviso, dentro do carro mesmo;  preocupado que surgisse um outro veículo, uma viatura policial talvez. Coloquei as roupas sujas de sangue e terra embaixo de um dos bancos. Vanessa pensara em tudo. Abaixo do banco traseiro encontrei uma bolsa contendo um mapa. Era a localização da residência de sua irmã. Havia um boné, um par de óculos escuro para disfarçar minha fisionomia abatida, água e barras de nutrição. 

Vanessa havia me ajudado, em troca lhe esmurrei com toda a minha força. Minha cabeça chegava a doer só de pensar que ela poderia estar em perigo ou gravemente ferida, tudo por minha causa. Me concentrei no plano, ganhando a estrada. Pelo mapa levariam horas até chegar à residência de Samanta Tifelli. Incomodou-me o fato de Vanessa mencionar Samanta como sua irmã, sendo que elas possuíam sobrenomes diferentes. 

Eu tinha que confiar em Vanessa, apesar de haver uma possibilidade de tudo aquilo ser uma armadilha. Todos estes pensamentos me acompanharam durante a viagem. Lá estava eu, em uma longa estrada. Poucos veículos passavam em direção contrária. Senti medo de ser reconhecido. A estrada me levaria para uma nova realidade. Um novo momento da minha consciência: o inesperado, o inevitável. 

Tive que atravessar outras duas estradas até alcançar a fronteira de Sant Adam que dava acesso ao município de Campbell. Eu teria que percorrer o centro até chegar na área rural. Na entrada da cidade, um grande portal de concreto saudava os visitantes  com os dizeres:

'Bem-vindo a Campbell, onde a vida e os sonhos tornam-se um só'.  

Com certeza aquela frase tinha tudo a ver comigo. A avenida principal era ladeada por uma grande quantidade de flores e plantas ornamentais. Há tempos meus olhos não viam algo tão belo. Uma repentina sensação de paz me invadiu. Foi como deixar os problemas do lado de fora da cidade. A realidade estava longe disso. Não havia sossego em minhas noites mal dormidas. Dirigi até sair do centro. Demorei um tempo considerável neste percurso. A pequena Campbell tinha grande fluxo de veículos em suas ruas principais. Cheguei a enfrentar até pequenos engarrafamentos. Uma paisagem rural admirável. O cuidado com a vegetação podia ser visto em suas árvores, nos gramados impecáveis. Enfim, tive acesso à rua onde Samanta morava. 

Uma das propriedades me chamou atenção e me dar uma gargalhada depois de tanto sofrimento, em seu gramado havia uma avestruz. Quem colocaria uma avestruz em seu quintal? Os cães que se cuidem. Foi engraçado.  A situação acabou por me distrair um pouco. Eu estava cansado e ansioso para conhecer a irmã de Vanessa Gispel. Estacionei em um lugar próximo e  dediquei-me a procurar pelo número 711. Andei alguns metros e finalmente estava em frente à residência de Samanta Tifelli. 

A moça já aguardava minha chegada. Ela me recebeu com ar de anfitriã. Educadamente, me convidou para entrar. Meus sapatos ainda eram os do INC. Minha aparência era péssima. Entrei em silêncio e com cautela, mas logo notei que estava seguro. A casa de Samanta era uma residência simples de dois quartos, cozinha e uma pequena sala de estar. Caminhamos até a sala e sentamos no sofá de dois lugares. Nos olhamos durante intermináveis segundos.

— Minha irmã se preocupa muito com você - disse Samanta quebrando o silêncio - Ela está se arriscando bastante.
— Eu sei. Não tive a quem recorrer. Perdoe-me por envolvê-la também.
— Não se preocupe. Conheço minha irmã. Ela deve ter bons motivos para ajudá-lo.
— Abrigar um fugitivo pode lhe trazer problemas.
— Você não é fugitivo, não existe mandado de busca em seu nome. Afinal seu nome não consta em canto algum - disse Samanta arqueando as sobrancelhas -  Conheço um pouco da sua história maluca. Se você realmente não existe para o sistema, não estou infringindo nenhuma lei. Você pode ficar por algum tempo. Os vizinhos não vão questioná-lo. Tente achar seu rumo. 

Samanta demonstrava sinceridade.
— Talvez eu tenha que lhe pedir algum favor mais cedo ou mais tarde.
— Espero que não sejam muitos. Procure não abusar. 

Fiquei observando a beleza daquela mulher. Em sua cintura uma arma. Em seu sorriso um encanto. Era tão bela quanto Vanessa, um pouco mais baixa, mas tinha um charme penetrante. Enquanto admirava sua beleza, analisava e agradecia a chance de entender o que estava acontecendo na minha vida. Finalmente, depois de um longo período de sofrimento e reclusão, alguém estava disposto a me ajudar. Depois de dizer as regras e me mostrar as dependências da casa, Samanta saiu para fazer sua rotina diária. Ela havia ficado a manhã toda à minha espera, precisava resolver seus assuntos policiais. 

Esperei que ela saísse. Tomei um banho. Estava tudo a meu favor. Encontrei até algumas peças de roupa  que Samanta havia separado para minha estadia. Tudo estava tão perfeito que cheguei a pensar que aquilo não passava de uma farsa. Meu objetivo era encontrar a verdade. Só o que me vinha à mente era aquele vulto que surgiu na estrada quando voltávamos do chalé. Possivelmente minhas respostas estivessem exatamente ali. A estrada poderia ser a razão de me encontrar em outra realidade. Tudo era tão improvável que todas as teorias eram válidas. 

Passaram-se quatro dias. Decidi caminhar. Samanta tinha razão, nenhum dos vizinhos me questionou. Caminhei tranquilamente dentro do condomínio. Procurei me ambientar, saindo todas as tardes para conhecer os arredores; aproveitando para observar se a minha presença havia alterado algo no dia a dia daquelas pessoas. Na verdade a maioria nem se importava comigo. Limitavam-se apenas ao clássico 'Bom dia', 'Boa Tarde' e 'Boa Noite'. Aguardei mais uma semana. 

Estava me preparando para enfrentar meus medos, meus fantasmas. Minha primeira atitude seria voltar à estrada em que o indígena apareceu "do nada" na frente do meu carro. Samanta, sempre solícita, concordou em me ceder o veículo novamente. Ela não foi contra a minha decisão de viajar sozinho; apenas recomendou cuidado. Sugeriu que levasse comigo o dispositivo GPS, e um celular para uma eventual emergência. A distância até o local do acidente era tão longa quanto a que percorri quando escapei do INC. Desta vez, eu estava mais preparado. Minha mente raciocinava melhor. Estava descansado e alimentado.

Saí bem cedo, enquanto Samanta e toda a vizinhança ainda dormiam. Deixei um recado de agradecimento, em um pequeno bilhete em cima da mesa. Lancei-me novamente ao comando do destino. Durante o caminho refleti sobre os acontecimentos. Havia uma possibilidade da minha viagem ser inútil. Se assim fosse, eu teria que corrigir a rota das minhas investigações. Se eu estivesse realmente preso em outra realidade, teria que enfrentar as consequências: esconder-me para sempre, criar uma nova identidade, me adaptar, me mesclar.

O Diário de Santee - Universos ParalelosWhere stories live. Discover now