O vulto na estrada

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A estrada era um convite para a imaginação. Eu estava dirigindo há mais de uma hora e ela ainda me parecia interminável. Karen dormia ao meu lado, o que era difícil de acontecer. Ela ficava muito ansiosa durante o caminho de ida ou volta. As crianças também se entregaram ao sono e o pequeno Tom acabou usando o corpo macio de Fiel como seu travesseiro. Fiel era da raça rottweiler. O cão vivia conosco desde filhote e tinha um faro de caçador. Comportava-se como protetor do pequeno Tom. Ele era o único que estava acordado e parecia atento à paisagem. 

Com a chegada do fim de tarde, o cenário na estrada começou a mudar. O sol começava a se esconder atrás das montanhas e todo o lugar foi sendo envolvido em uma penumbra. Continuei observando meus filhos pelo retrovisor por algum tempo e me lembrei de cada nascimento. Lembrei da alegria e da ansiedade em cuidar de cada um daqueles bebês. A alegria e a emoção de vê-los tão crescidos era indescritível. Não sei por quanto tempo distraí-me olhando pelo retrovisor, mas quando voltei o olhar para a estrada fiquei aterrorizado!

Um vulto à minha frente me fez frear o carro imediatamente. O veículo rodopiou na pista. Segurei firme ao volante na tentativa de controlar o carro que continuou a girar enquanto o som dos pneus cantando no asfalto quebrava o silêncio vindo da floresta que rodeava a estrada. O impacto contra a guia lateral foi forte a ponto de lançar o corpo de Karen contra o vidro da porta direita. As crianças foram jogadas umas contra as outras. O pequeno Thomas assustado começou a chorar. Minha cabeça latejava em consequência da pancada contra o vidro da frente e Karen tinha um pequeno corte no rosto. 

Apesar do susto e dos ferimentos leves, todos pareciam estar bem. Dediquei minha atenção a encontrar o causador do acidente. Saí do carro meio tonto e avistei a figura de um homem em meio a estrada. Ele continuava no mesmo lugar me observando, parado como uma estátua. — Você está louco, quase matou todos nós. — Gritei com fúria. O homem não respondeu. Aproximei-me mais um pouco, pois a fraca iluminação me impedia ver claramente. O desconhecido era uma espécie de indígena que vestia um casaco de pele animal. 

Um cocar na cabeça, cheio de penas projetava uma sombra assustadora que se estendia atrás dele esticada no asfalto. Caminhei lentamente em sua direção, minhas pernas tremiam e as batidas descompassadas em minha jugular denunciavam meu pavor. A figura imponente e misteriosa continuava impassível. Em passos lentos fui me aproximando, a cada passo dizia a mim mesmo para ter calma e ficar atento a um ataque repentino. O suor escorria em meu rosto, eu me sentia em um transe, as vozes que escutei no local das cachoeiras voltaram a sussurrar dentro da minha cabeça. Tentei me concentrar levando às mãos as orelhas. Olhei para o indígena e tive a impressão que os sussurros eram dele, mas seus lábios estavam imóveis. 

Ao fundo, escutei um som, parecia um pedido de socorro, era a chamada de Karen que aos gritos, me tirou do transe. Girei o corpo em um movimento instintivo, os sussurros desapareceram instantaneamente. Voltei para ajudá-la. Corri até o carro para ver o que estava acontecendo. Minha esposa segurava o pequeno Thomas em seu colo. O garoto estava em pânico, desesperado. Em uma atitude paterna, segurei-o em meus braços e falei mansamente em seus ouvidos até que o choro cessou. Karen sentou-se no banco do motorista, exausta manteve a porta aberta, seu corpo trêmulo ainda tentava reencontrar o equilíbrio após o choque do impacto contra o vidro. Thomas acalmou-se, então procurei me defender. Cheguei mais próximo a Karen para explicar o motivo da confusão e descrevi o homem que surgira em meio a estrada. Exaltado, eu apontava para o lado do indígena, mas ele já não estava lá. Nem a Karen nem as crianças haviam visto o homem na estrada. 

No final parecia que eu tinha tido uma alucinação. Karen ficou furiosa, tinha alguns hematomas pelo rosto e andava de um lado para o outro dizendo que eu quase havia matado a todos. Tentei me explicar. Apesar da confusão me senti despreocupado pelo fato de todos estarmos bem e pedi a Karen para se acalmar. Finalmente decidimos voltar para o carro. Karen fez questão de dirigir o resto do caminho, fato que não contestei em momento algum. Toda aquela agitação me deixou zonzo e confuso. Voltamos em silêncio. Ninguém conseguiu adormecer novamente. A viagem levou cerca de uma hora e meia. Fiquei muito aliviado quando avistei a avenida que dava acesso à nossa casa. Quando desci do carro, em frente de casa, estava passando mal. Eu tinha náuseas e minha cabeça estava a ponto de explodir. Fui direto para o chuveiro. O contato com a água fria melhorou um pouco o meu mal-estar. 

Estávamos todos assustados pelo acontecido e naquele momento o melhor a fazer era dormir, tentar esquecer do assunto. Dormir foi uma tarefa difícil. Fragmentos de imagens da floresta misturavam-se com as do chalé e da estrada. Acordei ofegante em meio à madrugada, transpirando muito. Levantei da cama com dificuldade e caminhei em direção ao banheiro. Minha cabeça latejava tanto que mal conseguia pensar. Cheguei até o banheiro tateando as paredes e procurei por algum comprimido que me aliviasse a dor. Tomei cuidado para não acordar a Karen, principalmente depois de tudo pelo que ela passou. Encontrei um analgésico no armário do banheiro e decidi tomar duas drágeas. 

Levei os comprimidos à boca e os engoli a seco. Voltei à cama e percebi que o relógio do despertador havia parado. O visor anunciava em letras vermelhas 2:34. Não me sentia em condições naquele momento de verificar a causa do problema, então me deitei novamente tentando recuperar o sono. Não demorou muito para o medicamento fazer efeito. Caí em sono profundo e me perdi em um mundo de sonhos e inconsciência. Despertei no outro dia sem a ajuda do despertador. A cabeça não doía mais. Senti-me recomposto. Por alguns instantes tive a impressão de que havia dormido durante dois ou três dias. 

Karen não estava na cama. O relógio continuava parado. Levantei e fui ao banheiro para tomar uma ducha quente. Preparava-me para sair, mas era perceptível a falta de prática. O atraso era consequência de um mês inteiro de férias. Havia perdido o costume da rotina diária. Estranhei o silêncio. Naquele horário o pequeno Thomas já teria ligado a TV em um volume acima do recomendado. Cindy gritaria para o Douglas sair logo do chuveiro por estar atrasada para o colégio. Terminei de me trocar e fui em busca de minha carteira e documentos; não os encontrei. Durante alguns minutos investi em procurá-los, mas acabei por desistir. Não poderia me atrasar na Universidade.

O Diário de Santee - Universos ParalelosWhere stories live. Discover now