twenty three

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O meu batom bordeaux ficou esborratado assim que os meus lábios encontraram-se com os do Harry. Eu iria ter Literatura e ele Ciências. O que apenas me deixa emocionalmente triste era o facto de eu não ver o rapaz pálido durante dois tempos. A seguir era Filosofia, a única aula que tínhamos juntos, com aquele professor psicótico. O professor que fez o Harry chorar.

[...]

Já na sala onde iria ocorrer a aula de Filosofia, continuávamos nos mesmos lugares: eu na carteira à frente da do Harry. Atirei a minha cabeça para trás e visualizava a cara do rapaz de cabelo encaracolado a brincar com o meu cabelo enquanto esperávamos pacientemente pelo professor.

Ele entrou e pousou a pasta em cima da secretária. Retirou o estojo e abriu o mesmo.

Virou-se de costas para nós e começou a escrever no quadro.

"A aula de hoje será sobre a..." As sílabas que ele escrevia acompanhavam a sua oralidade "Vida." E rodeou a mesma palavra.

"O assunto da morte foi a aula já há semanas, ou até mesmo meses." Comecei a pensar. "Esse assunto fez com que o Harry chorasse, se isso voltar a acontecer..."

"O que é que farias, Erica?" Perguntava-me agora a minha própria consciência.

"Gritava e batia no professor."

"Na tua imaginação."

"Exatamente."

Quando o Harry não se encontra a meu redor - quando não se situa no outro lado da linha telefónica ou quando não tem a possibilidade de responder - um diálogo entre mim e a minha consciência é criada nos meus pensamentos. Isto decidiu começar a acontecer desde o dia da morte do pai. Não é que ele tenha alterado completamente a minha comunicação com as pessoas ou algo do tipo desde que ele decidiu partir, mas esse mesmo acontecimento fez-me refletir em vários pontos e perspetivas que tenho dificuldade em partilhar com o Harry.

Ainda por cima que, após este tempo que o conheço, sei a sensibilidade dele quando se toca neste tipo de assunto - morte.

"Digam-me palavras que vos lembre da palavra e do significado de vida." Pediu o homem.

"Liberdade." Uma aluna ruiva do canto da sala falou.

"Existência." Um aluno que não me foi captado igualmente proferiu.

O professor ia escrevendo as palavras quando iam sendo pronunciadas.

"Amor." O Harry afirmou.

Nove palavras já haviam sido ditas, mas o professor não se encontrava satisfeito. Não a meu ver.

"Mais uma, por favor."

Ninguém se voluntariava. A turma não era grande o suficiente para haver vários exemplos, nesta divisão não era possível sequer encontrar cabeças a funcionar pelo cansaço imenso do que havia sido percorrido.

"Tu." Apontou-me o velho.

Fiquei calada durante um curto período de tempo quando a mesma pessoa começou a olhar para mim.

"Não sei." 

"Qualquer coisa."

"Desculpe." Baixei a cabeça, sem acrescentar mais e nada menos que um suspiro seco.

 O professor caminhou na direção do quadro. Abri o meu caderno na última página que estava completamente vazia. Comecei a desenhar do que me conseguia lembrar do dia em que houve a primeira feira.

"Não sairemos daqui sem uma resposta, menina."

Pousei o lápis na mesa.

"Tem mesmo de ser, professor?"

Thantophobia | h.s {reeditar}Onde histórias criam vida. Descubra agora