A casa no alto da colina

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O caminho está coberto de ervas.  Deixei o carro a duzentos metros do sítio que procurava e ali estava ele, velho, de cores debotadas  e telhado encovado. O monte da Costureira Lídia,  no alto da colina, já não tinha rosas vermelhas nem brancas, aquelas,  que nesta altura do ano floriam junto às paredes imaculadamente brancas. Um pouco mais adiante a grande azinheira de grande copa imponente e largo tronco, parecia que o tempo não tinha passado por ela. Lembrei que era ali que se fazia a matança do porco, local de encontro entre vizinhos, mesas cadeiras e muitos vasos de flores tornavam, o sítio da azinheira um local delicioso. Pareceu-me ouvir o som da morte do bicho e arrepiei-me, foi ali,  também que o João se enforcou. Vi  num grosso tronco da azinheira que ainda  estava por lá um bocado de corda, encostei-me ao tronco e lembrei a Lídia jovem e muito bem  parecida dirigindo-se, inquieta, aos meninos que corriam na ladeira por baixo da sua casa, a inclinação era acentuada e ao correr só conseguiam parar num estreito caminho espaçado por três metros do riacho que seguia a encosta da ladeira. Um perigo delicioso que servia de brincadeira para as crianças, eram felizes ouvindo-se ao longe os risos da vida e os burburinhos de quem a festejava.

A Senhora Lídia tinha raparigas a aprender costura na casa dela, teve 5 filhos. O marido, o Senhor João, tratava da horta e deslocava-se aqui e acolá para trabalhar nas quintas dos lavradores para todo o tipo de serviço de campo. Viviam com algumas privações, como em todas as casas de gente pobre dos anos 60. O pão fazia-se à semana, o azeite do lagar vizinho em troca de uns trabalhinhos, a criação do porco, as galinhas e os ovinhos, faziam com que a barriguinha da família tivesse sempre aconchegada.

 João gostava de passar na taberna do Afonso e por lá perder-se com os amigos na companhia dos copos de vinho, eram os "penaltis" que davam conta dele, dizia a Lídia quando ele chegava  tarde a casa  e a más horas, mas sempre bem-disposto. O tempo passou e com o tempo tudo mudou, a Lídia envelheceu muito antes do tempo não aguentou a morte de dois filhos num acidente de carro e mais tarde o desgosto do fim da vida do seu amado marido. De xaile seguro na corcunda das suas costas que foram cedendo ao longo dos anos, a Sr.ª Lídia viveu no monte sozinha mais de 20 anos o tempo suficiente para aceitar o seu destino. Foi depois do João ter sido posto na rua da casa de um lavrador por ter sido acusado de ter envenenado o gado por vingança. Diziam as más línguas que a Lídia não devia ser costureira de homens, as mulheres da aldeia costumavam comentar que ela dava muitos sorrisos aos clientes. Um dia o Dr. Gervásio declarou-se, dizendo que gostava da linda costureira que lhe fazia as calças. Num outro  dia, passou dos limites e a Lídia contou ao João, de imediato partiu para a briga dando uns socos no patrão Gervásio. Dias depois o Gervásio vai com a polícia a casa do João e levaram-no preso. Solto poucos dias depois por falta de provas circunstanciais, regressa a casa triste e sombrio, ninguém mais lhe deu trabalho.

O Dr. Gervásio, era uma pessoa influente. As Senhoras abastadas deixaram de ser clientes da Lídia:  o caos foi-se instalando e as crianças foram cada uma às suas vidas, as meninas para Lisboa servir na casa de umas Senhoras, os rapazes depois da tropa,  optaram por viver na cidade. Dois deles,  ao regressarem de uma visita aos pais tiveram um acidente de carro e morreram. A feliz família,  no seu lindo monte com rosas vermelhas e brancas vivia agora triste, as faltas eram muitas, os seus corações estavam destroçados e o orgulho do João foi roubado. A felicidade da Lídia foi furtada, ambos viviam por viver. Meses depois a Senhora Lídia abriu  a porta do monte olhando  para a azinheira e viu  o corpo do marido pendurado. Não gritou nem chorou, olhou e esperou que alguém lhe chegasse ao pé e assim aconteceu. Longas horas depois foram dar com ela sentada junto à azinheira olhando o corpo do marido. Seguiu a sua vida durante mais de 20 anos.  Uma ou outra vizinha visitava a Lídia sem nunca mais ouvir o som da sua voz.

Um dia vestiu-se a rigor com uma roupa que transformou e foi à missa. Todas as pessoas da aldeia sabiam quem ela era, todos  ficaram  a olhar espantados por verem  a Senhora Lídia muito bem vestida, corcunda,  mas muito distinta. O Sr. Padre deu-lhe as boas vindas e elogiou a seu retorno à casa do Senhor. Ninguém percebeu que ela estava a despedir-se do mundo. Voltou para casa sentou-se numa cadeira de baloiço junto à azinheira e por lá ficou até que a morte a levou. Viver e morrer é facto natural. No entanto a Lídia e o João foram vítimas da maldade humana e da falta de sorte ao perder entes queridos. Nem ela, nem o marido, estavam preparados para lidar com os acontecimentos inesperados que se abateram sobre a sua casa. A singularidade dos factos e a tal alma intangível bateu à porta do monte que, na encosta de um riacho,  se apresentava em plena harmonia, em tempos preenchido de vida e alegria.

Olhei à minha volta e vi o abandono total, senti as vibrações que estava procurando naquela visita taciturna, quis lembrar que nem a Lídia, nem o João, nem ninguém consegue prever as hostilidades e maleficência de certos seres, tudo isso e ainda o que o destino nos prega. Uma coisa é certa: o que hoje é um oásis nas nossas vidas amanhã pode ser o flagelo. No percurso de uma vida tudo pode acontecer. Tenhamos paz de espirito.

Maria Fernanda Calado 

História de CabeceiraWhere stories live. Discover now