III

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Aos poucos, as casas ao redor da praça foram acendendo, só um aviso passivo de que aquela gritaria toda incomodava. Ninguém saiu para ajudar, ninguém abriu uma janela, nenhum homem veio defender aquele ato de covardia. Meu íntimo enojou, com todas as forças, todos aqueles que moravam por aqui, fossem quem fossem.

A moça que me salvara me olhava num misto de raiva e surpresa. Ela também me conhecia, como qualquer pessoa daqui. Meu pai me exibia como um troféu nas ruas, como sendo a princesa da Igreja, mesmo que na realidade ele mal me dirigia à palavra.

- O que você está fazendo aqui? - ela perguntou, num sussurro irritado, quando os homens começaram a se afastar levando as mulheres, muitas desacordadas.

- Recebi um convite. - foi o que soube dizer. Afinal, não tinha explicação para eu estar naquele lugar, aquela hora.

- Impossível. Gente como você jamais seria convidada. - ela falou, sem eufemismos. Se não fossem suas palavras tão claras, só seus olhos já me mostrariam o que ela considera de mim. - Você vem comigo.

E, sem chances de dizer não, ela me arrastou pela lateral das casas até eu entender que estávamos seguindo para a Toca. O lugar onde as pessoas que minha mãe odiava se escondia à noite. Logo que pisei no beco, cabeças começaram a se levantar ou aparecer nas portas, sem entender o motivo de minha presença. Imaginei que, como vingança, estariam me levando à um caldeirão e embrulhariam meus restos para levar aos meus pais.

Havia uma agitação mais a frente, choros baixos e uma mulher alta e forte que tentava lhes dizer que estava tudo bem. Quando me viu, sua feição se mudou para algo cético.

- Olha o que achei no meio da Caça. - a moça que havia me resgatado disse, me olhando de lado. - Disse ter recebido um convite.

- DESGRAÇADA, ELES LEVARAM A MINHA FILHA! - uma terceira mulher, muito menos calma, apareceu ao meu lado, cuspindo em meu rosto. Aquilo doeu no fundo da minha alma. Um homem ao seu lado impediu que ela se aproximasse mais.

- Se acalmem. - a mulher alta disse, sem se exaltar, e foi o suficiente para que todos se calassem para ouvi-lá. - Eu a convidei e, como previ, está aqui.

- O quê? Por quê? - a moça ao meu lado perguntou.

- Eu a conheço, June. - ela disse, olhando fixamente para mim. Seu corpo exalava autoridade. - Sei que você julga seu pai e seus atos. Afinal, é por isso que está aqui, e há lágrimas em seus olhos.

- Eu... - tentei me defender, mas era inútil. Um, eu não diria que apoiava meu pai quando ele mataria as filhas e amigas das mulheres aqui. E dois, porque eu realmente não apoiava.

- E porque você acha que não foi ela que denunciou que estaríamos ali? - a moça ao meu lado perguntou, exaltada.

- Alguma vez você me viu errar sobre minha intuição? - ela perguntou, elevando um pouco mais a voz. A moça se calou, abaixando a cabeça.

- Eu não entendo... Porque você iria me querer aqui? - perguntei, levando as mãos à cabeça. A mulher sorriu para mim.

- Querida, você tem algo que eu preciso, e vou pedir a sua ajuda com isso.

Ela disse e, antes que terminasse de falar, eu já sabia que algo muito errado estava prestes a acontecer.

547 palavras

HeresiaWhere stories live. Discover now