V

37 8 8
                                    

Eu não desejo a ninguém a cena que vi quando cheguei. Três mulheres machucadas amarradas a tocos de madeira sendo vítima dos olhares julgadores dos crentes sentados à sua frente. Tentei parecer o mais normal possível com aquela cena com meus pais por perto, mas eu sabia que estava me segurando para não chorar.

Era chegada à hora. Meu pai subiria ao palco improvisado para alertar as pessoas o que acontecia com aqueles que se afastavam de Deus e mandaria acender o fogo. E então, como se não fosse o cúmulo da doença, observariamos as mulheres agonizarem até seus corpos serem carbonizados. Mas, repentinamente, meu pai se virou para mim.

- Quer fazer as honras? - ele perguntou para mim, apontando o palco. - As pessoas precisam começar a confiar em você.

E eu, sem pensar, aceitei. Minhas pernas falhavam na missão de me levar ao palco, mas eu fui de cabeça erguida. As mulheres amarradas ao lado do palco me olharam com uma raiva quase palpável.

- Boa tarde a todos. - comprimentei, logo que subi. As pessoas à baixo sorriam para mim. Doentes. - Essa é uma época do ano difícil para nós. Precisamos reafirmar nossa fé e decidirmos de que lado ficaremos. Do lado do Bem ou do Mal.

Meu pai assentia a cada palavra que eu dizia. Se havia um Deus nesse momento que concordava com o que ele fazia, eu esperava que me perdoasse.

- E, para nos sentirmos melhores, atacamos e maltratamos mulheres inocentes. Afinal "amor ao próximo" é só aos que convém e começamos até a pensar que podemos escolher quem vive ou morre. Não há lugar para escolhas e pensamentos diferentes. Somos todos do mesmo molde da ignorância. - falei, decidida.

A plateia era de choque e raiva. Minha mãe colocou a mão sobre a mão, sem acreditar. Mas eu tinha que continuar, como me pediram pra fazer.

- A Noite Das Bruxas não é um culto secreto demoníaco como nos fizeram acreditar, é a desculpa para homens cegos de fé poderem maltratar mulheres que só queriam se divertir. Assistimos mulheres serem queimadas vivas e depois vamos nos ajoelhar e pedir perdão pelos nossos pecados? Não sei se acreditamos no mesmo Deus, porque, para mim, todos vocês estariam no inferno. - falei, deixando sair tudo aquilo que esteve entalado na minha garganta. Tudo que ouvi e descobri e me deixei acreditar que não era verdade.

E os cidadãos da alta sociedade que jamais eram contrariados, principalmente sua fé, estavam tão concentrados nas minhas palavras contra eles que não perceberam que as mulheres não estavam mais ali, só havia sobrado as cordas com que as amarraram. Até uma mulher sentada na frente apontar para os tocos vazios e gritar, fazendo a plateia explodir em gritos irritados e choros, xingando e apontando para mim.

Eu não sabia como elas tinham sumido, nem qual era o segredo das mulheres corajosas que enfrentavam o patriarcado até o fim de suas vidas. Mas se pelo menos uma das mulheres aristocratas sentadas ali se sentiu mal com algo que eu disse, eu já estava satisfeita. E, se entrasse em problemas com a igreja, eu sabia que poderia contar com uma ajuda.

523 palavras

HeresiaOnde histórias criam vida. Descubra agora