Prólogo

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Meu amigo.

          Este livro o vai naturalmente encontrar em seu pitoresco sítio da várzea, no doce lar, que povoa a numerosa prole, alegria e esperança do casal. 

          Imagino que é a hora mais ardente da sesta.

          O sol a pino dardeja raios de fogo sobre as areias natais; as aves emudecem; as plantas languem. a natureza sofre a influência da poderosa irradiação tropical, que produz o diamante e o gênio, as duas mais sublimes expressões do poder criador.

          Os meninos brincam na sombra do outão¹ com pequenos ossos de reses², que figuram a boiada. Era assim que eu brincava, há quantos anos, em um sítio, não mui distante do seu. A dona da casa, terna e incansável, manda abrir o coco-verde ou prepara o saboroso creme do buriti para refrigerar o esposo, que pouco há recolheu de sua excursão pelo sítio e agora repousa embalado-se na macia e cômoda rede. 

          Abra então este livrinho, que lhe chega da corte imprevisto. Percorra suas páginas para desenfastiar o espírito das cousas graves que o trazem ocupado. 

          Talvez me desvaneça amor do ninho ou se iludam as reminiscências da infância avivadas recentemente. Se não, creio que, ao abrir o pequeno volume, sentirá uma onda do mesmo aroma silvestre e bravio que lhe vem da várzea. derrama-o a brisa que perpassou os espatos³ da carnaúba e  ramagem das aroeiras em flor.

          Essa onda é a inspiração da pátria que volve a ela, agora e sempre, como volve de contínuo o olhar do infante para o materno semblante que lhe sorri. 

          O livro é cearense. Foi imaginado aí, na limpidez desse céu de cristalino azul, e depois vazado no coração cheio das recordações vivaces de uma imaginação virgem. Escrevi-o para ser lido lá, na varanda da casa rústica ou na fresca sombra do pomar, ao doce embalo de rede, entre os múrmures do vento que crepita  na areia ou farfalha nas palmas dos coqueiros.

          Para lá, pois, que é o berço seu, o envio.

          Mas assim mandado por um filho ausente, para muitos estranho, esquecido talvez dos poucos amigos, e só lembrado pela incessante desafeição, qual sorte será a do livro?

          Que lhe falte hospitalidade, não há temer. As auras de nossos campos parecem tão impregnadas dessa virtude primitiva, que quantas raças habitem aí a inspiram com o hálito vital. Receio sim que seja recebido como estrangeiro e hóspede na terra dos meus.

          Se porém, ao abordar as páginas do Mocoripe, for acolhido pelo bom cearense, prezado de seus irmãos ainda mais na adversidade do que nos tempos prósperos, estou certo que o filho de minha alma achará na terra de seu pai a intimidade e conchego da família.

          O nome de outros filhos enobrece nossa província na política e na ciência; entre eles o meu, hoje apagado, quando trazia brilhantemente aquele que primeiro o criou. neste momento mesmo a espada heroica de muito bravo cearense vai ceifando  no campo da batalha ampla messe de glória.  

          Quem não pode ilustrar a terra natal canta as lendas suas, sem metro, na rude toada de seus antigos filhos.

          Acolha pois a primeiro mostra e ofereça a nossos patrícios, a quem é dedicada.

          Este pedido foi um dos motivos de lhe endereçar o livro; o outro lhe direi depois que o tenha lido.

          muita cousa me ocorre dizer sobre o assunto, que talvez devera antecipar a leitura da obra, para prevenir a surpresa de alguns e responder às observações ou reparos de outros.   

          Mas sempre fui avesso aos prólogos; em meu conceito eles fazem à obra o mesmo que o pássaro à fruta antes de colhida: roubam as primícias do sabor literário. por isso me reservo para depois.

          Na última página me encontrará de novo; então conversamos a gosto, em mais liberdade do que teríamos nesse pórtico do livro, onde as etiquetas mandam receber o público com a gravidade e reverência devido a tão alto senhor.


1. Outão: parede que compõe a lateral de uma edificação.

2. Reses: quaisquer animais de quatro patas que foram abatidos para alimentação humana.

3. Espatos: tipos de minerais.




Iracema - José de AlencarWhere stories live. Discover now