IV

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O pajé vibrou o maracá, e saiu da cabana, porém o estrangeiro não ficou só. 

Iracema voltara com as mulheres chamadas para servir o hóspede de Araquém e os guerreiros vindos para obedecer-lhe.

- Guerreiro branco, disse a virgem, o prazer embale a tua rede durante a noite; e o sol traga luz aos teus olhos, alegria à  tua alma.

E assim dizendo Iracema tinha o lábio trêmulo e úmido e pálpebra. 

- Tu me deixas? perguntou Martim.

- As mais belas mulheres da grande taba contigo ficam.

- Para elas a filha de Araquém não devia ter conduzido o hóspede à cabana do pajé.

- Estrangeiro, Iracema não pode ser tua serva. É ela que guarda o segredo da jurema e o mistério do sonho. Sua mão fabrica para o pajé a bebida de Tupã.

O guerreiro cristão atravessou a cabana e sumiu-se na treva.

A grande tabe erguia-se no fundo do vale, iluminada pelos fachos da alegria. Rugia a maracá; ao quebro lento do canto selvagem, batia a dança em torno a rude cadência. O pajé inspirado conduzia o sagrado tripúdio e dizia ao povo crente os segredos de Tupã.

O maior chefe da nação tabajara, Irapuã, descera do alto da serra Ibiapaba para levar as tribos do sertão contra o inimigo pitiguara. Os guerreiros do vale festejavam a vinda do chefe e o próximo combate.

O mancebo cristão viu longe o clarão da festa, e passou além, e olhou o céu azul sem nuvens. A estrela morta que então brilhava sobre a cúpula da floresta guiou seu passo firme para as frescas margens do Acaraú.

Quando ele transmontou o vale e ia penetrar na mata, o vulto de Iracema surgiu. A virgem seguira o estrangeiro como a brisa sutil que resvala sem murmurejar por entre a ramagem. 

- Por que, disse ela, o estrangeiro abandonou a cabana hospedeira sem levar o presente da volta? Quem fez mal ao guerreiro branco n aterra dos tabajaras?

O cristão sentiu quanto era justa a queixa, e achou-se ingrato. 

- Ninguém fez mal ao teu hóspede, filha de Araquém. Era o desejo de ver seus amigos que afastava dos campos dos tabajaras. Não levava o presente da volta;  mas leva em sua alma a lembrança de Iracema. 

- Se a lembrança de Iracema estivesse n'alma do estrangeiro, ela não o deixaria partir. O vento não leva a areia da várzea, quando a areia bebe a água da chuva.

A virgem suspirou:

- Guerreiro branco, espere Caubi volte da caça. O irmão de Iracema tem o ouvido sutil, que pressente a boicininga¹ entre os rumores da mata, e o olhar do oitibó², que vê melhor na treva. Ele te guiará às margens do rio das garças.

- Quanto tempo se passará antes que o irmão de Iracema esteja de volta na cabana de Araquém? 

- O sol, que vai nascer, tornará com o guerreiro Caubi aos campos do Ipu.

- Teu hóspede espera, filha de Araquém; mas se o sol tornando não trouxer o irmão de Iracema, ele levará o guerreiro branco à taba dos pitiguaras.

 Martim voltou à cabana do pajé.

A alva rede que Iracema perfumara com a resina do beijoim guardava-lhe um sono calmo e doce. O cristão adormeceu ouvindo suspirar, entre os murmúrios da floresta, o canto mavioso da virgem indiana.


1. Boicininga: cascavel.

2. Oitibó: ave mais conhecida como bacurau.

3. Beijoim: resina aromática extraída do tronco de certas espécies do gênero Styrax.

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⏰ Last updated: Nov 29, 2019 ⏰

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Iracema - José de AlencarWhere stories live. Discover now