O pajé vibrou o maracá, e saiu da cabana, porém o estrangeiro não ficou só.
Iracema voltara com as mulheres chamadas para servir o hóspede de Araquém e os guerreiros vindos para obedecer-lhe.
- Guerreiro branco, disse a virgem, o prazer embale a tua rede durante a noite; e o sol traga luz aos teus olhos, alegria à tua alma.
E assim dizendo Iracema tinha o lábio trêmulo e úmido e pálpebra.
- Tu me deixas? perguntou Martim.
- As mais belas mulheres da grande taba contigo ficam.
- Para elas a filha de Araquém não devia ter conduzido o hóspede à cabana do pajé.
- Estrangeiro, Iracema não pode ser tua serva. É ela que guarda o segredo da jurema e o mistério do sonho. Sua mão fabrica para o pajé a bebida de Tupã.
O guerreiro cristão atravessou a cabana e sumiu-se na treva.
A grande tabe erguia-se no fundo do vale, iluminada pelos fachos da alegria. Rugia a maracá; ao quebro lento do canto selvagem, batia a dança em torno a rude cadência. O pajé inspirado conduzia o sagrado tripúdio e dizia ao povo crente os segredos de Tupã.
O maior chefe da nação tabajara, Irapuã, descera do alto da serra Ibiapaba para levar as tribos do sertão contra o inimigo pitiguara. Os guerreiros do vale festejavam a vinda do chefe e o próximo combate.
O mancebo cristão viu longe o clarão da festa, e passou além, e olhou o céu azul sem nuvens. A estrela morta que então brilhava sobre a cúpula da floresta guiou seu passo firme para as frescas margens do Acaraú.
Quando ele transmontou o vale e ia penetrar na mata, o vulto de Iracema surgiu. A virgem seguira o estrangeiro como a brisa sutil que resvala sem murmurejar por entre a ramagem.
- Por que, disse ela, o estrangeiro abandonou a cabana hospedeira sem levar o presente da volta? Quem fez mal ao guerreiro branco n aterra dos tabajaras?
O cristão sentiu quanto era justa a queixa, e achou-se ingrato.
- Ninguém fez mal ao teu hóspede, filha de Araquém. Era o desejo de ver seus amigos que afastava dos campos dos tabajaras. Não levava o presente da volta; mas leva em sua alma a lembrança de Iracema.
- Se a lembrança de Iracema estivesse n'alma do estrangeiro, ela não o deixaria partir. O vento não leva a areia da várzea, quando a areia bebe a água da chuva.
A virgem suspirou:
- Guerreiro branco, espere Caubi volte da caça. O irmão de Iracema tem o ouvido sutil, que pressente a boicininga¹ entre os rumores da mata, e o olhar do oitibó², que vê melhor na treva. Ele te guiará às margens do rio das garças.
- Quanto tempo se passará antes que o irmão de Iracema esteja de volta na cabana de Araquém?
- O sol, que vai nascer, tornará com o guerreiro Caubi aos campos do Ipu.
- Teu hóspede espera, filha de Araquém; mas se o sol tornando não trouxer o irmão de Iracema, ele levará o guerreiro branco à taba dos pitiguaras.
Martim voltou à cabana do pajé.
A alva rede que Iracema perfumara com a resina do beijoim guardava-lhe um sono calmo e doce. O cristão adormeceu ouvindo suspirar, entre os murmúrios da floresta, o canto mavioso da virgem indiana.
1. Boicininga: cascavel.
2. Oitibó: ave mais conhecida como bacurau.
3. Beijoim: resina aromática extraída do tronco de certas espécies do gênero Styrax.
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Iracema - José de Alencar
RomanceEste livro faz parte da trilogia indianista de José de Alencar - que inclui, anida, O Guarani e Ubirajaba - , vertente da literatura romântica brasileira que buscou valorizou os temas e a língua nacionais. Escrito em 1865, é um clássico brasileir...