III

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O estrangeiro seguiu a viagem através da floresta.

Quando o sol descambava sobre a crista dos montes e a rola desatava do fundo da mata os primeiros arrulhos, eles descobriram no vale a grande taba; e mais longe, pendurado no rochedo, à sombra dos altos juazeiros, a cabana do pajé.

O ancião fumava à porta, sentado na esteira de carnaúba, meditando os sagrados ritos de Tupã. O tênue sopro da brisa carmeava¹, como frocos da algodão, os comprimidos e raros cabelos brancos. De imóvel que estava, sumia a vida nos olhos cavos e nas rugas profundas.

O pajé lobrigou² os dois vultos que avançavam; cuidou ver a sombra de uma árvore solitária que vinha alongando-se pelo vale fora.

Quando os viajantes entraram na densa penumbra do bosque, então seu olhar como o do tigre, feito  às trevas, conheceu Iracema, e viu que a seguia um jovem guerreiro de estranha raça e longe terras.

As tribos tabajaras, d'além Ibiapaba, falavam de uma nova raça de guerreiros,  alvos como flores de barraca e vindos de remota plaga às margens de Mearim. O ancião pensou que fosse um guerreiro semelhante, aquele que pisava os campos nativos.

Tranquilo, esperou.

A virgem apontou para o estrangeiro e diz:

- Ele veio, pai.

- Veio bem. É Tupã que traz o hóspede À cabana de Araquém.

Assim dizendo, o pajé passou o cachimbo ao estrangeiro; e entraram ambos na cabana.

O mancebo sentou na rede principal, suspensa no centro da habitação.

Iracema acendeu o fogo da hospitalidade, e trouxe o que havia de provisões para satisfazer a fome e a sede: trouxe os restos de caça, a farinha d'água, os frutos silvestres, os favos de mel e o vinho de caju e ananás.

Depois a virgem entrou com a igaçaba³, que encheu na fonte próxima de água fresca para lavar o rosto e as mãos do estrangeiro. 

Quando o estrangeiro terminou a refeição, o velho pajé apagou o cachimbo e falou:

- Vieste?

- Vim, respondeu o desconhecido.

- Bem vieste. O estrangeiro é o senhor da cabana de Araquém. Os tabajaras tem mil guerreiros para defendê-lo, e mulheres sem conto para servi-lo. Dize, e todos lhe obedecerão. 

- Pajé, eu  te agradeço o agasalho que me deste. Logo que o sol nascer, deixarei tua cabana e teus campos onde vim perdido; mas não devo deixa-los sem dizer-te quem é o guerreiro, que fizeste amigo.

- Foi Tupã que pajé serviu: ele te trouxe, ele te levará. Araquém nada fez pelo hospede; não pergunta de onde vem, e quando vai. Se queres dormir, desçam sobre ti os sonhos alegres; se queres falar, teu hóspede escuta. 

O estrangeiro disse:

- Sou dos guerreiros brancos que  levaram a taba nas margens do Jaguaribe, perto do mar, onde habita os pitiguaras, inimigos de tua nação. Meu  nome é Martim, que tua língua diz como filho de guerreiro; meu sangue o do grande povo que primeiro viu as terras de tua pátria. Já meus destroçados companheiros voltaram por mar as margens do Paraíba, de onde vieram; e o chefe, desamparado dos seus, atravessa agora os vastos sertões do Apodi. Só eu de tantos fiquei, porque estava entre os pitiguaras do Acaraú, na cabana do bravo Poti, irmão de Jacaúna, que plantou comigo a árvore da amizade. Há três sóis partimos para a caça; e perdido dos meus vim aos campos dos tabajaras. 

- Foi algum mau espírito da floresta que cegou o guerreiro branco na escuridão da mata, respondeu o ancião.

A cauã piou, além, na extrema do vale. Caía a noite.


1. Carmeava: desfazia os nós de algodão.

2. Lobrigou: avistou.

3. Igaçaba: recipiente de barro usado para armazenar alimentos; urna funerária indígena, camucim. 

Iracema - José de AlencarWhere stories live. Discover now