II

4 0 0
                                    

Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema.

Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna e mais longos que seu talhe de palmeira.

O favo de jati¹ não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado. 

Mais rápido corça selvagem, a morena virgem corria a sertão e matas do Ipu, onde campeava sua guerreira tribo da grande nação tabajara. O pé grácil e nu, mal roçando, alisava apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as primeira águas. 

Um dia, o pino do sol, ele repousava em um claro da floresta. banhava-lhe o corpo na sombra da oiticica, mais fresca que o orvalho da noite. Os ramos da acácia silvestre esparziam flores sobre seus úmidos cabelos. escondidos na folhagem, os pássaros ameigavam o canto. 

Iracema saiu do banho: o aljôfar² d'água ainda a roreja³, como a doce mangaba que corou em manhã de chuva. Enquanto repousa, empluma das penas do gará⁴ as flechas de seu arco e concerta com o sabiá da mata, pousado no galho próximo, o canto agreste.

A graciosa ará⁵, sua companheira e amiga, brinca junto dela. Às vezes, sobe aos ramos da árvore e de lá chama a virgem pelo seu nome; outras remexe o seu uru⁶ de palha matizada, onde traz a selvagem seus perfumes, os alvos fios do crautá⁷, as agulhas da juçara com que tece a renda e as tintas de que matiza o algodão.

Rumor suspeito quebra a doce harmonia da sesta. Ergue a virgem os olhos, que o sol não deslumbra; sua vista perturba-se.

Diante dela e toda a contemplá-la está um guerreiro estranho, se é guerreiro e não algum mau espírito da floresta. tem nas faces o branco das areias que bordam o mar. Nos olhos, o azul triste das águas profundas. Ignotas armas e tecidos ignotos cobrem-lhe o corpo.  

Foi rápido, como o olhar, o gesto de Iracema. A flecha embebida no arco partiu. Gotas de sangue borbulham na face do desconhecido. 

De primeiro ímpeto, a mão lesta⁸ caiu sobre a cruz da espada; mas logo sorriu. O moço guerreiro aprendeu na religião de sua mãe, onde a mulher é símbolo de ternura e amor. Sofreu mais d'alma do que da ferida. 

O sentimento que ele pôs nos olhos e no rosto não sei eu. Porém a virgem lançou de si o arco e a uiraçaba⁹ e correu para o guerreiro sentida da mágoa que causara. A mão que rápida ferira estancou mais rápido e compassiva o sangue que gotejava. depois Iracema quebrou a flecha homicida: deu a haste ao desconhecido, guardando consigo a ponta farpada.

O guerreiro falou:

- Quebras comigo a flecha da paz?

- Quem te ensinou, guerreiro branco, a linguagem de meus irmãos? Donde vieste a estas matas, que nunca vieram outro guerreiro como tu? 

- Venho de bem longe, filha das florestas. venho das terras que teus irmãos já possuíram e hoje têm os meus.   

- Bem-vindo seja o estrangeiro aos campos dos tabajaras, senhores das aldeias, e à cabana de Araquém, pai de Iracema.


1. Jati: jatobá.

2. Aljôfar: gota d'água com aspecto de pérola.

3. Roreja: banha ( gota a gota ).

4. Gará: tipo de ave.

5. Ará: arara.

6. Uru: cesto indígena.

7. Crautá: planta da família das bromeliáceas.

8. Lesta: ágil.

9. Uiraçaba: em  tupi, "lugar de flecha".

Iracema - José de AlencarKde žijí příběhy. Začni objevovat