XIV - Estranho

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Estou pronto.

Não, não estou.

Volto-me para a parede, inquieto. Não quero transparecer como estou nervoso, ansioso, um caco. Hoje não me apetece muito, mas não me posso esquivar. Estou a fingir-me interessado numa fenda quase invisível que desce do teto e que curva para a direita, perdendo-se no estuque e por isso deixam-me em paz.

Não quero, não quero mesmo.

Hoje não quero.

- Vem cá.

Sinto um toque no ombro, suave, suficientemente persuasivo para que me volte. Eu nunca consigo resistir-lhe, por isso qualquer gesto dele tem a magia de me fazer obedecer. Ele nem se apercebe desse poder. Ou talvez se aperceba e o julgue tão natural que nem o toma em consideração para ser incluído no seu currículo de múltiplos talentos.

Olha-me, inclinando um pouco a cabeça para a direita. Está a ficar mais velho. Noto-lhe as rugas de expressão em redor dos olhos e da boca, os pequenos sulcos na testa. As maçãs do rosto menos firmes, o cansaço nas olheiras. Estamos os dois a envelhecer e até pode ser considerado bonito que o estejamos a fazer juntos.

Partilhamos os nossos dias há quase vinte anos. É muito tempo, não é? Nunca tive um relacionamento ou um casamento que durasse tanto tempo. Concluindo, o que eu tenho com ele é mais sólido do que qualquer outra ligação que tenho com outra pessoa.

O que somos um para o outro? O que somos, verdadeiramente?

Por vezes faço essa pergunta a mim mesmo e descubro que, por muito que fuce no meu baú das memórias, não tenho uma reposta adequada. Somos simplesmente eu e ele e isso basta. Tem bastado, ao longo destes quase vinte anos. Para de pensar nisso! Quando pensas demasiado, estragas tudo.

Afaga-me os braços, alisa-me a camisa sobre o peito. Verifica a minha indumentária, passando rapidamente pelos detalhes. A combinação de cores, os acessórios, os vincos, como tudo me assenta como uma luva. Estará a cobiçar-me o corpo por detrás da roupa? Estará a imaginar-me nu? Sinto os intestinos a se apertarem. Não quero que ele me deseje, aumentaria a minha sensação desagradável... o meu pânico. Posso ser um dia eu próprio sem que me queiram arrancar um pedaço? Só por um dia... estar sozinho e sem nada à volta que me faça a cobrança por estar vivo?

- Estás bem, estás apresentável – diz-me. – Não é preciso que te sintas envergonhado. Vai correr bem, como das outras vezes.

- Não estou envergonhado.

- Estás para aí a fixar a parede há um tempo infinito. Eu conheço-te.

- Hoje é um dia esquisito.

- Não te sentes bem? Podemos dispensar-te...

- Não é isso.

- O que é, então, Chazy? Conta-me. A sério. Se não o quiseres fazer, arranjamos uma desculpa qualquer e não vais. É simples.

- Estão à minha espera.

Mike encolhe os ombros, torce os lábios.

- Estão à espera de todos nós. Não seria a primeira vez que um falta. Somos nós que mandamos, lembra-te. Basta uma palavra nossa e as coisas são redesenhadas. Esta parte não é obrigatória. Tu sabes...

Faço um sorriso irónico, cansado.

- Ora, Mike.... Sabes muito bem que estão sempre à minha espera. Querem ver-me antes de qualquer um de vocês.

Ele muda a expressão. Tornou-se rígido. Ofendi-o. Mais uma vez, sou demasiado sincero e atinjo um nervo sensível. Os Linkin Park não são só eu, mas acaba por ser. Todos querem ver, tocar e ter o vocalista que lhes canta as dores da adolescência e as trevas da vida. O resto, os outros cinco, ele incluído, o génio por detrás do monstro, só existem para me darem a ribalta. A verdade é lixada.

O Lado Oculto da LuaWhere stories live. Discover now