Aquilo que dói - Parte 2

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Meu pai era um bom homem. Ele sempre nos ensinou princípios e um deles era que deveríamos sempre buscar a paz com as pessoas. Morria de pena dele. Perdeu a esposa muito cedo e precisou voltar à casa da sua mãe, minha avó, para que pudesse ajudar a nos criar. Minha tia e minha avó cuidavam de mim e minha irmã, quando meu pai estava trabalhando.

Apesar de sentir muita saudade de minha mãe, eu não podia reclamar, elas cuidavam de nós com muito amor. O jantar era a melhor hora do dia, pois, além de comer a comidinha gostosa da vó Nita, podíamos conversar e contar piadas.

Mas, nesse dia, eu não tinha nada engraçado para contar.

— Não está com fome, benção? — Tia Vera notou que meu prato estava pouco mexido. —Merendou antes do jantar, foi?

— Não, tia, eu até com fome... Mas com sono. Aí fico meio avoada.

Oxe! mentindo pra tia, é? — minha irmã denunciou.

— Cala a boca, Cida! — disse a ela, tentando não chamar atenção, mas não adiantou.

— Calo nada! — Ela olhou para meu pai e minha avó. — O retardado do Ricardo tava cantando nega do cabelo duro pra ela!

— Cidinha, olha a boca! — vó Nita retrucou.

— Ele mexeu com você de novo? — Minha tia franziu a testa ao falar. — Mas não é possível, esse garoto tem problemas!

— Filha — meu pai largou o talher na mesa e me encarou —, não deve se importar com o que os outros pensam de você, deixa esse garoto pra lá!

Eles começaram a falar todos ao mesmo tempo. Minha avó dizia que Ricardo fazia isso porque os pais dele estavam separados, minha tia tinha pena de mim e contou que quando era pequena também sofria com esse tipo de coisa, minha irmã disse que ninguém mexia com a irmã dela e se ele fizesse aquilo de novo, ia juntar com mais duas colegas e bater em seu focinho.

Eu estava nervosa, comecei a respirar rápido demais, sem saber o que fazer. Eu só queria que parassem de falar sobre aquele assunto, eu só queria que Ricardo me deixasse em paz!

— Amanhã, antes de ir ao trabalho, vou a escola conversar com a diretora e...

— Não, pai. Não precisa! — De jeito nenhum eu ia deixar meu pai ir lá. O garoto ia tomar uma advertência e ia ficar com mais raiva ainda de mim, com certeza, ia piorar para o meu lado. — Já sei como resolver isso.

— Como?

Todos olharam para mim e eu engoli minha saliva.

— Passa alguma coisa em mim, tia, aquilo que você passa no cabelo das suas clientes. Quando você dá ferro, meu cabelo fica tão bonito!

Oxe, mas você ainda não está na idade pra passar química, Ritinha. Não sei se é bom...

— Por favor, tia... — implorei — Quando eu chegar na escola com cabelo liso, ele não vai ter mais o que falar e para de encher meu saco. Por favorzinho! — Juntei as mãos na frente para que ela ficasse com dó de mim.

— Bem, isso diminui o trabalho para pentear o cabelo dela, Vera! — Minha avó balançou a cabeça.

— Ah, mainha, eu não sei, depois dá uma reação nesse couro cabeludo... Ela é muito novinha.

— Eu já tenho 13 anos, tia!

— E eu tenho 12, se Ritinha fizer, eu vou fazer também.

— Faz esse negócio, Vera, pelo amor de Deus! — painho pediu. — Assim a bichinha para com esse sofrimento. Você sabe quanto é ruim ser preto, ter cabelo duro, não sabe? Nestante você tava contando as coisas que ouvia na escola. Você quer que as meninas passem por isso também?

bom, bom! — minha tia finalmente cedeu. — Vou diluir um pouco o produto, para aliviar...

Abracei minha tia e agradeci, afinal, todos os meus problemas iriam se resolver: nunca mais Ricardo iria me abusar, nunca mais minha tia teria trabalho para pentear meu cabelo, nunca mais meu pai teria problemas.

Nunca mais eu me teria a dor de me sentir feia.


Meu amores, separei propositalmente o capítulo, porque envolvem outras questões, outras dores

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Meu amores, separei propositalmente o capítulo, porque envolvem outras questões, outras dores. Agora é o ambiente familiar. Espero que comentem o que acharam, especialmente as vozes dos adultos nessa relação: Qual papel da minha fala para o outro? Como os educadores (pais, mães, avós, professores) podem contribuir para o fortalecimento das crianças? 


Cachos, pra quê te quero? (Degustação)Where stories live. Discover now