Meu pai era um bom homem. Ele sempre nos ensinou princípios e um deles era que deveríamos sempre buscar a paz com as pessoas. Morria de pena dele. Perdeu a esposa muito cedo e precisou voltar à casa da sua mãe, minha avó, para que pudesse ajudar a nos criar. Minha tia e minha avó cuidavam de mim e minha irmã, quando meu pai estava trabalhando.
Apesar de sentir muita saudade de minha mãe, eu não podia reclamar, elas cuidavam de nós com muito amor. O jantar era a melhor hora do dia, pois, além de comer a comidinha gostosa da vó Nita, podíamos conversar e contar piadas.
Mas, nesse dia, eu não tinha nada engraçado para contar.
— Não está com fome, benção? — Tia Vera notou que meu prato estava pouco mexido. —Merendou antes do jantar, foi?
— Não, tia, eu até tô com fome... Mas tô com sono. Aí fico meio avoada.
— Oxe! Tá mentindo pra tia, é? — minha irmã denunciou.
— Cala a boca, Cida! — disse a ela, tentando não chamar atenção, mas não adiantou.
— Calo nada! — Ela olhou para meu pai e minha avó. — O retardado do Ricardo tava cantando nega do cabelo duro pra ela!
— Cidinha, olha a boca! — vó Nita retrucou.
— Ele mexeu com você de novo? — Minha tia franziu a testa ao falar. — Mas não é possível, esse garoto tem problemas!
— Filha — meu pai largou o talher na mesa e me encarou —, não deve se importar com o que os outros pensam de você, deixa esse garoto pra lá!
Eles começaram a falar todos ao mesmo tempo. Minha avó dizia que Ricardo fazia isso porque os pais dele estavam separados, minha tia tinha pena de mim e contou que quando era pequena também sofria com esse tipo de coisa, minha irmã disse que ninguém mexia com a irmã dela e se ele fizesse aquilo de novo, ia juntar com mais duas colegas e bater em seu focinho.
Eu estava nervosa, comecei a respirar rápido demais, sem saber o que fazer. Eu só queria que parassem de falar sobre aquele assunto, eu só queria que Ricardo me deixasse em paz!
— Amanhã, antes de ir ao trabalho, vou a escola conversar com a diretora e...
— Não, pai. Não precisa! — De jeito nenhum eu ia deixar meu pai ir lá. O garoto ia tomar uma advertência e ia ficar com mais raiva ainda de mim, com certeza, ia piorar para o meu lado. — Já sei como resolver isso.
— Como?
Todos olharam para mim e eu engoli minha saliva.
— Passa alguma coisa em mim, tia, aquilo que você passa no cabelo das suas clientes. Quando você dá ferro, meu cabelo fica tão bonito!
— Oxe, mas você ainda não está na idade pra passar química, Ritinha. Não sei se é bom...
— Por favor, tia... — implorei — Quando eu chegar na escola com cabelo liso, ele não vai ter mais o que falar e para de encher meu saco. Por favorzinho! — Juntei as mãos na frente para que ela ficasse com dó de mim.
— Bem, isso diminui o trabalho para pentear o cabelo dela, Vera! — Minha avó balançou a cabeça.
— Ah, mainha, eu não sei, depois dá uma reação nesse couro cabeludo... Ela é muito novinha.
— Eu já tenho 13 anos, tia!
— E eu tenho 12, se Ritinha fizer, eu vou fazer também.
— Faz esse negócio, Vera, pelo amor de Deus! — painho pediu. — Assim a bichinha para com esse sofrimento. Você sabe quanto é ruim ser preto, ter cabelo duro, não sabe? Nestante você tava contando as coisas que ouvia na escola. Você quer que as meninas passem por isso também?
— Tá bom, tá bom! — minha tia finalmente cedeu. — Vou diluir um pouco o produto, para aliviar...
Abracei minha tia e agradeci, afinal, todos os meus problemas iriam se resolver: nunca mais Ricardo iria me abusar, nunca mais minha tia teria trabalho para pentear meu cabelo, nunca mais meu pai teria problemas.
Nunca mais eu me teria a dor de me sentir feia.
Meu amores, separei propositalmente o capítulo, porque envolvem outras questões, outras dores. Agora é o ambiente familiar. Espero que comentem o que acharam, especialmente as vozes dos adultos nessa relação: Qual papel da minha fala para o outro? Como os educadores (pais, mães, avós, professores) podem contribuir para o fortalecimento das crianças?
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Cachos, pra quê te quero? (Degustação)
ChickLitO bullying sofrido na escola, os comentários pejorativos dos familiares e a falta de quem cuidasse do seu cabelo, fizeram com que Rita odiasse seus cachos. Não havia melhor solução para eles do que alisá-los. Com seu "problema" resolvido, Rita cres...