Capítulo VIII O Primeiro Pedido de Casamento de Anne

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O velho ano não se despediu com um crepúsculo esverdeado e um pôr do sol com pinceladas cor-de-rosa e amareladas. Ao invés disso, foi embora com uma tempestade branca e violenta e um vendaval feroz. Era uma das noites em que os ventos de temporal sopravam ruidosamente contra os prados congelados e os vales escuros, gemendo em torno dos beirais feito uma alma errante e atirando a neve furiosamente contra as vidraças que estremeciam.

— É exatamente o tipo de noite em que as pessoas gostam de se aconchegar entre as cobertas e ficar em oração – disse Anne para Jane Andrews, que viera passar a tarde com ela e ficara para dormir. Mas quando estavam aconchegadas entre as cobertas, no quartinho de Anne, não era em orações que Jane estava pensando.

— Anne, quero conversar sobre um assunto com você. Posso? – pediu ela, muito solenemente.

Anne sentia-se um pouco sonolenta depois da festa que Ruby Gillis celebrara na véspera. Preferia ter ido dormir a ouvir as confidências de Jane, que certamente a deixariam entediada. Não tinha a mais remota ideia do assunto que se aproximava. Provavelmente Jane também estava comprometida. Existiam rumores de que Ruby Gillis estava enamorada do professor de Spencervale, por quem diziam que todas as moças suspiravam.

"Em breve serei a única donzela livre e desimpedida de nosso antigo quarteto", pensou Anne, sonolenta. Em voz alta ela respondeu:

— É claro.

— Anne – prosseguiu Jane, em tom ainda mais solene –, o que você acha do meu irmão, Billy?

Anne arfou diante de tão inesperada pergunta e debateu-se impotentemente em seus pensamentos. Por Deus, o que ela achava de Billy Andrews? Ela nunca tinha pensado nada a respeito dele – sobre seu rosto arredondado e expressão de tonto, sobre estar sempre sorridente, sobre o bom caráter de Billy Andrews. Será que alguém já tinha pensado em Billy Andrews?

— Eu... eu não compreendo, Jane – gaguejou. — O que quer dizer, exatamente?

— Você gosta do Billy? – ela perguntou, abruptamente.

— Ora... ora... sim, gosto dele, é claro – ofegou Anne, perguntando-se se estava literalmente dizendo a verdade. Por certo ela não desgostava de Billy. Mas poderia a indiferente tolerância com a qual ela o tratava, quando ocorria do rapaz estar em seu raio de visão, ser considerada positiva o bastante para gostar? O que Jane estava tentando elucidar?

— Você gostaria dele como marido? – inquiriu Jane, calmamente.

— Como marido! – Anne, que estivera sentada na cama para melhor lidar com o problema de sua exata opinião de Billy Andrews, agora caiu para trás, de costas sobre os travesseiros, perdendo completamente o fôlego. — Marido de quem?

— Seu, é claro! – respondeu Jane. — Billy quer desposá-la. Ele sempre foi louco por você. Agora o papai colocou a fazenda do campo de cima em nome dele, e não há nada que o impeça de se casar. Mas ele é tão tímido que não se atreveria a pedir sua mão pessoalmente, e então me encarregou de fazê-lo. Eu preferiria não ter aceitado a incumbência, mas ele não me deixou em paz até que eu lhe dissesse que pediria, se tivesse uma boa oportunidade. O que você acha, Anne?

Era um sonho? Era um daqueles pesadelos, no qual a pessoa se vê noiva ou casada com alguém a quem odeia ou não conhece, sem ter a menor ideia de como isso acontece? Não. Ela, Anne Shirley, estava deitada em sua própria cama, absolutamente acordada; e Jane Andrews estava ao seu lado, propondo-lhe calmamente que se casasse com seu irmão. Anne não sabia se queria chorar ou rir, mas não poderia fazer nenhum dos dois, pois os sentimentos de Jane não deveriam ser feridos.

— Eu... eu não poderia me casar com Billy, Jane, você sabe – ela conseguiu murmurar. — Ora, uma ideia como esta nunca me ocorreu... nunca!

— Não pensei que tivesse ocorrido – concordou Jane. — Billy sempre foi tímido demais para pensar em cortejar. Mas pense bem, Anne. Billy é um bom rapaz. Devo dizer isso, mesmo sendo meu irmão. Não tem maus hábitos e é um bom trabalhador, e você pode confiar nele. Mais vale um pássaro na mão do que dois voando. Ele pediu que eu lhe dissesse que está disposto a esperar até que você termine a faculdade, se você insistir, embora ele prefira se casar nesta primavera, antes do início do plantio. Estou certa de que ele sempre será muito bondoso com você, Anne, e eu adoraria tê-la como irmã.

— Não posso me casar com Billy – foi a resposta decidida de Anne. Já havia recuperado completamente sua inteligência viva e até se sentia um pouco irritada. Tudo aquilo era muito ridículo. — É inútil pensar no assunto, Jane. Não sinto nada nesse sentido pelo seu irmão e você precisa dizer isso a ele.

— Bem, não achei que você sentisse – ela redarguiu, com um suspiro resignado, sentindo que tinha dado seu melhor. — Eu havia dito ao Billy que achava ser perda de tempo falar com você, mas ele insistiu. Bem, você tomou sua decisão, Anne, e espero que não se arrependa.

Jane falou com certa frieza. Sabia perfeitamente que o enamorado Billy não tinha a mínima chance de induzir Anne a casar-se com ele. Não obstante, estava um pouco ressentida por Anne Shirley – que era, apesar de tudo, uma mera órfã adotada, sem ter onde cair morta – ter recusado seu irmão, um dos Andrews de Avonlea.

"Bem, algumas vezes o orgulho vem antes da queda", refletiu Jane, ominosamente. E Anne permitiu-se sorrir no escuro perante a ideia de que pudesse arrepender-se de não se casar com Billy Andrews.

— Espero que Billy não fique muito triste por causa disso – comentou, amavelmente.

Jane fez um movimento como se sacudisse a cabeça apoiada no travesseiro.

— Oh, você não vai partir o coração dele! Billy tem muito bom senso para isso. Ele também gosta bastante de Nettie Blewett, e mamãe prefere que ele se case com ela do que com qualquer outra. A moça é econômica e é uma boa administradora. Acho que, quando Billy souber de uma vez que você o rejeitou, vai pedir a mão de Nettie. Por favor, Anne, não mencione isto a ninguém, pode ser?

— Claro que não – disse Anne, que não tinha nenhuma vontade de apregoar pelas redondezas que Billy Andrews a pedira em casamento, preferindo ela, considerando-se todas as coisas, a Nettie Blewett. Nettie Blewett!

— E, agora, suponho que seja melhor descansarmos – sugeriu Jane.

E isso Jane fez com facilidade e rapidez. Porém, apesar de ser uma pessoa muito diferente de Macbeth na maioria dos aspectos, ela tinha certamente contribuído para matar o sono de Anne. A donzela que recebera a proposta manteve-se desperta até o amanhecer, mas suas meditações estavam longe de ser românticas. Entretanto, somente após a metade da manhã que ela teve a oportunidade de entregar-se a uma boa gargalhada sobre toda a questão. Quando Jane foi para casa – ainda com um tom de voz frio e maneiras reservadas, pois Anne havia declinado de forma tão ingrata e resoluta a honra de formar uma aliança com a família Andrews –, Anne retirou-se para o quarto, fechou a porta e soltou, enfim, sua gargalhada.

"Se eu pudesse compartilhar esta piada com mais alguém!", ela pensou. "Mas não posso. Diana é a única pessoa a quem eu gostaria de fazer esta revelação e, mesmo que não tivesse prometido segredo a Jane, não posso contar as coisas para Diana agora. Ela conta tudo para Fred; sei que conta. Bem, recebi meu primeiro pedido de casamento. Imaginei que aconteceria, algum dia, mas com certeza nunca pensei que seria mediante procuração. É extremamente engraçado – e, ainda assim, também há um aguilhão, de certo modo."

Ainda que não confessasse, intimamente Anne sabia direitinho em que consistia o aguilhão. Ela tivera seus sonhos secretos sobre a primeira vez em que alguém lhe faria a grande pergunta. E, naqueles sonhos, tudo sempre havia sido muito bonito e romântico: e o "alguém" seria extremamente charmoso, de olhos escuros, eloquente e de aparência distinta, sendo ele o Príncipe Encantado para ser recebido com um "sim", ou outro a quem devia dar uma recusa desesperançada e belamente preparada – embora muito pesarosa. Neste último caso, a recusa era para ser expressa de forma tão delicada que seria quase a mesma coisa que uma aceitação; e, depois de beijar-lhe a mão, ele partiria assegurando-lhe sua eterna e inabalável devoção. E assim seria como um belo episódio para recordar com orgulho e também com certa tristeza.

E, agora, esta emocionante experiência tornara-se meramente grotesca. Billy Andrews enviara a irmã para propor matrimônio porque seu pai tinha lhe dado a fazenda do campo de cima, e se Anne não o "aceitasse", Nettie Blewett aceitaria. Aí estava o romance, acompanhado de uma vingança! Anne riu, e então suspirou. O brilho de um pequeno sonho juvenil fora apagado. Continuaria assim o doloroso processo, até que tudo se tornasse prosaico e monótono?


Anne da Ilha | Série Anne de Green Gables III (1915)Where stories live. Discover now