O julgamento

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Reino de Elif - Oeste - 11h15mins

Naquela manhã nublada, Bernau coçava a barba e observava a neve cair do lado de fora, como uma pequena garoa de cristais brancos que batia suavemente contra o vidro da janela. De tempos em tempos, uma corrente de ar gelado atingia sua nuca, sempre que alguém abria as portas duplas aos fundos da sala de julgamento. Nesses intervalos, o frio percorria as fileiras de bancos de madeira, onde advogados e seus clientes aguardavam, e as lufadas de vento se espalhavam pelas paredes de concreto, produzindo um som ululante, semelhante a um apito quebrado. Quando Bernau era pequeno, seu pai lhe dizia que era o som dos fantasmas.

Naquela época, o fato de ser um sem raça e, portanto, não ter os poderes da essência para o proteger, havia o tornado um menino medroso. Por essa razão, os fantasmas haviam assombrado boa parte das noites de sua infância, mas, ainda assim, eles não eram tão desagradáveis quanto os problemas da vida adulta.

Bernau ajeitou os óculos e se recostou na cadeira, observando, ansiosamente, o juiz avaliar os papéis sobre sua mesa. Ao lado dele o advogado tamborilava os dedos sobre o colo, com a postura de quem estava acostumado aos tribunais elifianos.

Contendo um bocejo, Bernau inclinou o pescoço para trás a fim de enxergar o outro par de cadeiras que ocupava a primeira fila, próximas à mesa do juiz, do lado oposto da sala. Ali, sua filha de um ano sugava o bico de uma mamadeira de metal, aconchegada no colo de sua esposa, ou melhor, ex-esposa. Seria preciso se acostumar com a nova categoria que Arlina passaria a ocupar em sua vida depois daquela sessão.

Ela notou que Bernau a observava e passou os braços ao redor da filha como se buscasse protegê-la dos olhos do pai. Bernau se sentiu ofendido com o gesto e fuzilou a mulher com o olhar, recebendo uma reação recíproca. Porém, ambos se voltaram para a frente, quando o juiz começou a falar.

-Bem, não me parece haver muita dúvida de que o pai é quem possui as melhores condições financeiras para sustentar a filha - disse o magistrado, apoiando os indicadores sobre os lábios e sem tirar os olhos dos papéis sobre a mesa. - De um lado temos o salário generoso e regular de um professor da Universidade de Loppi, do outro, temos uma renda instável da empregada de um salão de beleza. De acordo com o decreto-local nº 67, visando o interesse da criança, cumpre a mim atribuir a guarda ao senhor Ber...

-Isso é injusto! - se insurgiu Arlina, provocando uma expressão surpresa no juiz e recebendo um olhar de censura de seu advogado. Em seu colo, a filha continuava a sugar o líquido da mamadeira. - O que eu recebo no trabalho pode não ser muito, mas é o suficiente para dar uma vida feliz à Frida e também estou juntando dinheiro para abrir o meu próprio salão.

-Suficiente - desdenhou Bernau, atraindo o olhar do juiz. Ele imprimiu energia na voz fraca, para que pudesse ser ouvida por Arlina. - Quando morávamos juntos você não ajudava em nada, eu é que pagava tudo, inclusive para a Frida. Era assim quando você era maquiadora do grupo de teatro e continuou assim quando você foi trabalhar no salão. Como pode falar que ganha o suficiente para vocês duas?

-E isso é só sobre dinheiro? - perguntou Arlina, os olhos transbordando ódio. Sua pele clara se avermelhou. - Por que você pode cuidar melhor da Frida? Acredito que dentre os papéis que meu advogado entregou ao senhor juiz esteja o histórico de quando Bernau esteve internado no manicômio.

-O que você quer dizer com isso? - indagou Bernau, a mandíbula travada pelo acesso de raiva. Ele sentiu que os cochichos que antes ecoavam pela sala se calaram e teve a impressão de que todos os olhares recaíam sobre a discussão. Era vergonhoso, mas ele não conseguia conter a irritação. Arlina não lhe tiraria sua filha, sobretudo com um argumento baixo como aquele! - Eu nunca escondi esse fato de ninguém, senhor juiz - continuou Bernau, falando para o magistrado, que apoiava o queixo nas mãos e observava a cena com impaciência. - Tive alguns problemas de saúde, mas isso aconteceu anos atrás, hoje eu estou curado e sequer preciso continuar tomando os remédios. Mas se o senhor quiser saber quem é a maior louca nesta sala...

-Se os senhores não pretendem parar com essas ameaças, é bom que me avisem - cortou o juiz. - Só posso julgar casos civis, o exército é que cuida dos criminais e a conduta dos senhores nesta sala está à beira do delito.

-Peço desculpas, senhor juiz - disse Arlina, sem conseguir conter pequenos tremores. - Mas acho que seria de se considerar que eu moro nesta cidade, enquanto meu ex-marido se mudou há poucos dias para a Casa das Aparições - aquele nome pareceu provocar novos cochichos entre os espectadores atrás de Bernau. - Acredito que o senhor já deve ter ouvido falar sobre esta casa, senhor juiz, fica a pelo menos cinco quilômetros da saída da cidade, isolada no topo de uma colina. Nesses dias de inverno é um lugar macabro. Isso sem falar das histórias...

-Lá vem você outra vez com isso - falou Bernau, revirando os olhos verdes.

-Das histórias que contam sobre o lugar - prosseguiu Arlina, apertando a cabeça da filha contra o peito, como se pudesse protegê-la de suas próprias palavras. O juiz a encarava com uma sobrancelha erguida, parecendo desconfiado, mas não a interrompeu. - Há décadas dizem que a casa é assombrada por pessoas que já morreram. Os espíritos dessas pessoas permaneciam presos aos seus corpos sem vida, que continuavam a se mover, como verdadeiros fantasmas. Sem saber o que fazer com essas criaturas, os antigos moradores da cidade as enterraram no topo da colina, mas elas não desapareceram, permanecem ali, vagando por aquele lugar com seus corpos putrefatos e aparecendo de tempos em tempos para os vivos. É por isso que apelidaram a propriedade de Casa das Aparições. Não é à toa que está sempre à venda.

-A casa foi vendida porque o antigo dono se mudou para o sul - falou Bernau, balançando a cabeça, indignado. - E só tolos a chamam assim. Francamente...

-Aquela casa não é lugar para uma criança! - exclamou Arlina. - Não é lugar para a minha filha!

-Você é uma louca, fumante de flor da lua! - xingou o ex-marido.

-Calados! - gritou o juiz, fazendo Bernau estremecer. O magistrado esperou o silêncio imperar novamente, então prosseguiu, falando para Arlina. - A senhora que me desculpe, mas de todas as manifestações extraordinárias da essência em nosso mundo, eu asseguro que mortos-vivos não são uma delas e, se alguém viu coisas assim por aí, de fato deve ter perdido a sanidade - Arlina parecia prestes a dizer alguma coisa, mas o juiz levantou o indicador pedindo que parasse. - Está decidido, ainda tenho muitos casos para hoje e, acreditem ou não, este é dos mais simples. A criança ficará sob a guarda do pai e a senhora Arlina terá o direito de visitá-la aos fins de semana. Em nome dos poderes que me foram dados pela Coroa de Elif, declaro o caso encerrado.

A Casa das Aparições (Uma história do mundo de Elif)Where stories live. Discover now