A casa na colina

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Se Bernau achou vergonhoso o episódio ocorrido na sala de julgamento, o que aconteceu do lado de fora foi ainda pior. Frida estava na casa da mãe há quase duas semanas, desde o divórcio, e Bernau não pretendia esperar sequer um segundo a mais para voltar à companhia de sua pequena.

Apesar dos ânimos exaltados dos pais, a filha dormia no colo da mãe. Porém, quando Bernau pediu amigavelmente que Arlina lhe entregasse a criança, a mulher gritou em protesto e Frida acordou assustada. O escândalo foi tamanho que os guardas responsáveis pela segurança do tribunal precisaram intervir e tirar a menina à força dos braços de Arlina para entregá-la a Bernau.

Obviamente, Frida chorou e todas as pessoas presentes se amontoaram em volta da cena. Arlina não parava de gritar que Bernau jamais ficaria com sua filha e ele precisou sair às pressas do local, envergonhado e temeroso pelos traumas que o episódio poderia causar a Frida.

Quando chegou à calçada, Bernau cobriu os poucos cabelos da cabeça com um chapéu de lã, abrigou a filha dentro de seu sobretudo e andou a passos largos até uma das carruagens que aguardavam na rua, atrelada a um corcelo, cujas escamas, as quatro patas e a cabeça de salamandra eram aquecidas por chamas tremeluzentes que saíam da mão do cocheiro, um homem da raça natur, de quarenta e poucos anos.

Bernau informou o destino ao homem e, tão logo fechou a porta da carruagem, o cocheiro chicoteou o corcelo e as rodas de ferro rolaram sobre o piso de pedra, deixando para trás o prédio antigo do tribunal. Bernau fechou os olhos e respirou aliviado, pousando Frida no acento acolchoado ao seu lado. A pequena fazia beicinho e tinha os olhos marejados, mas parecia milagrosamente calma e em poucos minutos o sacolejar da carruagem a fez pegar no sono.

Bernau fez um muxoxo e esfregou o rosto magro com as mãos ossudas. Ele imediatamente se arrependeu de ter se deixado dominar por sua irritação na sala de julgamentos. Certamente havia pessoas que o conheciam ali e talvez até mesmo pais de alunos da Universidade, que comentariam sobre o episódio em casa e provocariam uma reação em cadeia que poderia iniciar uma onda de fofocas em seu ambiente de trabalho.

Ainda assim, a culpa não era inteiramente sua. Como é que Arlina tivera a coragem de falar em público sobre sua vergonhosa passagem pelo manicômio? O relacionamento dos dois havia atingido patamares degradantes nos últimos tempos, mas Bernau não imaginava que poderiam chegar a esse ponto.

Parte dele ainda nutria sentimentos pela ex-esposa, tinha saudades dos períodos inesquecíveis que passaram juntos no fim da juventude, da inteligência da mulher ao discutir assuntos profundos, de seu senso de humor para contar piadas e de sua criatividade para inventar histórias. Sem falar do sexo. Como era bom!

Arlina era sem dúvidas o elo mais bonito do casal, tinha lindos cabelos ruivos, feições atraentes e um corpo que fazia inveja às mais cobiçadas jovens de Elif. Ele, por outro lado, era franzino, miúdo, tinha um nariz comprido demais para o rosto, usava óculos que apequenavam seus olhos e beirava a calvície. Ainda assim, a conexão entre os dois superava essas diferenças e o envolvimento que demonstravam entre quatro paredes era difícil de se encontrar.

Porém, tudo o que parecia perfeito ruiu sem que Bernau pudesse fazer nada. O senso de humor de Arlina sumiu assim que o grupo de teatro para o qual trabalhava faliu e seus sonhos de estrelato foram por água abaixo. A tristeza que a acompanhou depois disso levou embora sua paciência e a transformou em uma pessoa implicante e irritadiça. Seu apetite sexual desapareceu em seguida e a vida íntima do casal foi por água abaixo.

Ainda assim, Bernau estava disposto a superar as dificuldades ao lado da esposa, pretendia ajudar-lhe financeiramente pelo tempo que fosse necessário, tolerava as discussões frequentes e até mesmo se conformara com o fato de que não fazia sexo desde que Frida fora concebida. Porém, foi Arlina quem decidiu ir embora e, quando o fez, quis levar a filha junto.

A Casa das Aparições (Uma história do mundo de Elif)Donde viven las historias. Descúbrelo ahora