O som na escuridão

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As últimas horas de sol do dia foram monótonas e Bernau as ocupou com tarefas domésticas. Frida dormiu por todo o período e mal acordou para tomar a mamadeira da noite. O pai começava a achar o comportamento da menina incomum, mas se convenceu de que tudo não passava de muito cansaço após um dia estressante. Assim, se aproveitando que a filha não demandava maiores cuidados, Bernau aproveitou o período noturno para colocar em dia o trabalho atrasado.

Após o banho, ele vestiu um roupão e desceu até o térreo, carregando um envelope repleto de provas por corrigir que pousou sobre a mesa de centro da sala, próxima à lareira. Em seguida, escolheu a lenha armazenada em um dos nichos da parede e levou alguns minutos até conseguir produzir um fogo duradouro. Do lado oposto da sala, as vidraças começavam a se tingir de branco, à medida que a nevasca que caía em meio à escuridão se chocava contra a casa. O contraste entre a visão do frio, do lado de fora, e a sensação do calor, do lado de dentro, pareciam tornar o ambiente ainda mais agradável.

Depois de preparar uma xícara de chá, Bernau sentou na poltrona de frente para a lareira e, com a caneta em mãos, deu início às correções dos exames de Geografia Elifiana Avançada. A sala estava à meia luz, tornando a claridade do fogo mais perceptível, ao passo que os sons da madeira crepitante, à frente, e da ventania, às costas, formavam uma combinação interessante que aguçava a concentração de Bernau.

Em pouco tempo ele estava completamente envolvido em sua atividade, passeando os olhos rapidamente pelas letras dos alunos e assinalando erros e acertos com a agilidade de quem tinha anos de prática. Seu foco no trabalho era tamanho que ele sequer viu o tempo passar e nem saberia dizer que horas eram quando um som diferente lhe chegou aos ouvidos.

Era um rangido longo e prolongado, que vinha de algum lugar do lado de fora. Bernau franziu o cenho, tentando se recordar de onde conhecia o barulho, até que a memória lhe provocou um arrepio: era o portão da frente.

Ele virou para trás com um sobressalto, ajeitando os óculos e espremendo os olhos para tentar enxergar a entrada da casa, porém, era difícil ver qualquer coisa em meio à neve e à penumbra. Ele pousou o que tinha em mãos sobre a mesa e apurou os ouvidos, procurando por outros sons distintos, mas nada lhe ocorreu. Ainda assim, era possível que o vento houvesse rompido as fechaduras do portão e, se ele estivesse mesmo aberto, animais poderiam entrar na propriedade em busca de comida e abrigo.

Bernau suspirou e se ergueu, calçando os chinelos de lã junto à poltrona e caminhando até o hall, onde os dedos pressionaram os interruptores junto à porta de entrada. Quando o primeiro botão acionou a iluminação externa, ele deixou escapar um grito e sentiu que o coração queria sair pela garganta: havia uma mulher na casa.

Os olhos de Bernau se arregalaram e os pelos do corpo inteiro se arrepiaram. Ela estava a poucos metros da porta de entrada, o corpo extremamente pálido, coberto por um sobretudo roto e botas de pele. Os cabelos loiros e oleosos escorriam pelo rosto e um sorriso plástico revelava quase todos os dentes da boca. As pálpebras sombreadas envolviam os olhos azuis, que se focavam fixamente em Bernau.

Ele congelou. Apesar da respiração acelerada e da pulsação frenética, não conseguia se mover. Era como se o corpo se recusasse a crer na imagem que o cérebro mostrava. Porém, quando a mulher deu o primeiro passo em direção à porta, ele deixou escapar um novo grito e recuou de costas em direção à cozinha. O que faria? Ela poderia estar perdida? Não, seu sorriso afastava essa possibilidade. Então por que estava ali? O que uma mulher faria naquele lugar àquela hora? A única explicação possível era... "Casa das Aparições", o nome ecoou na mente de Bernau, que sentiu os olhos lacrimejarem.

A mulher agora estava junto à vidraça, ainda sorrindo. Bernau continuou recuando até sentir as costas tocarem a pia, então se virou para procurar um facão na gaveta. Porém, batidas no vidro o fizeram virar assustado em direção à assombração, que dava soquinhos contra a porta. Ela acenou para Bernau, balançando os dedos da mão junto ao rosto. Ele respondeu mostrando a faca, mas, para sua surpresa, o sorriso da mulher pareceu se alargar.

A Casa das Aparições (Uma história do mundo de Elif)Where stories live. Discover now