4 - Dezenove

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Era verdade tínhamos tempo. A falta de luz também inventava mais tempo para as pessoas estarem juntas, devagar.
Para mim a falta de luz era estar ali com ele, de mãos dadas - os meus lábios na espera dos lábios dele.

-Conta - ela pediu.
-Quantos dedos tens?
-Dez.
-Tem certeza?
-Tem razão, tenho vinte.
-Pois a minha vó só tem dezenove.
-Porquê?
-Eu era pequeno quando tudo isso aconteceu. O meu avô já tinha morrido a muitos anos. Um dia apareceu em minha casa da minha avó um soviético que gostava muito dela. Trazia flores e muitas garrafas de vinho. Passaram muito tempo assim. Um dia, o soviético disse à minha avó que tinha que ir embora para a terra dele. E veio perguntar se ela queria ir com ele.
-E ela queria?
-Primeiro queira, sim.
-E depois?
-Nós, os netos, ficamos todos tristes por ela ir embora com o soviético. Pedimos para ela ficar, chorávamos muito só de pensar que ela ia para tão longe.
-Tão longe?
-Era onde ficava a casa dele.
-E depois?
-A minha avó Dezenove mudou de ideias, disse ao soviético que não ia para o "tão-longe" com ele. O soviético ficou muito chateado, veio à casa da minha avó, partiu todas as garrafas que lhe tinha oferecido. Ele estava muito zangado. A última garrafa escapou-lhe da mão e partiu-se no pé da minha avó, cortou-lhe um dedo.
-Um dedo?
-Sim, um dedo do pé esquerdo. Ela ficou só com dezenove dedos.
-E o soviético foi-se embora?
-Sim
-Se o soviético gostava tanto da tua avó, ele podia ter ficado cá.
-Foi o que nós dissemos à avó Dezenove enquanto ela fazia o curativo.

    Ele olhava para a parede branca que estava a nossa frente, a menos de dois metros. Acariciava um dedo da minha mão, fazia-me festinhas muito devagarinho. Eu senti um pouco de vergonha de toda aquela história que eu tinha acabado de inventar.
    Atrás de nós havia um jardim com flores, com uma goiabeira e muitos arbustos. Lá longe, fora do quintal, havia uma curva onde passavam poucos carros. Ele não sabia, mas quando um carro fizesse aquela curva, na parede branca íamos ter Cinema Bu.

-Tás a fazer festinhas no meu dedo ou no dedo da minha avó? - eu quis saber.
-Nós dois - ele respondeu com um sorriso quente.

Uma escuridão bonita  [concluida]Where stories live. Discover now