Primeira Carta

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Ficarás, sem dúvida, surpreendida quando achar esta carta no meu cofre, ao lado barras de ouro. Teria sido talvez melhor confiá-la ao Constantino para te entregar depois da minha morte. Ou, deixá-la na gaveta da minha escrivaninha - a primeira que os nossos filhos hão-de arrombar, ainda antes de esfriar a carne. A verdade é que, durante anos, fui redigindo em espírito esta carta e, nas minhas insónias, via-a na cômoda do quarto - de uma cômoda vazia cujo único conteúdo era esta vingança, planeada ao longo de quase 20 anos. Mas, podes estar descansada, e estou certo de que, efectivamente, já estás: - O ouro está todo lá. Sim, através do véu e de luto, tu dirás aos filhos: "O ouro está todo lá."

Pouco faltou para que não estivesse, pois cheguei a tomar medidas nesse sentido. Se eu não tivesse querido, vocês hoje teriam apenas a casa e as terras. Tiveram a sorte de eu sobreviver a parte de meu ódio. Acreditei, durante muito tempo, que esse ódio era o que de mais vivo havia em mim. Porém, agora já não o sinto. No velho que hoje sou já não há vestígios do doente enfurecido de outros tempos que passava as noites não a arquitetar a sua vingança (essa bomba relógio estava montada com uma minúcia que era todo o meu orgulho), mas a tentar descobrir a maneira de ainda a poder gozar. Nada me daria maior satisfação do que viver o suficiente para poder ver a vossa cara depois de saber que a maior parte do ouro, iria parar nas mãos de um estranho. Para tanto, importava não te dar cedo demais as minhas cartas e a chave do cofre. Só deveria entregar-te no momento exato para poder sentir a alegria de onde ouvir as vossas perguntas repassadas de inquietação: "onde estão os diamantes?". Estou certo de que a mais atroz agonia não diminuiria tamanho prazer. Sim, confesso que fui capaz de tais maquinações. Como cheguei a este ponto, eu, que não era um monstro?

São quatro horas. Cobertos de moscas, a bandeja do meu almoço e os pratos sujos estão ainda sobre a mesa. Já toquei o sino, mas nem as escravas apareceram. No campo, as campainhas quase nunca funcionam. Sem impaciência, para aqui me deixo estar neste quarto onde dormi quando era criança e onde, certamente, morrerei. Nesse dia, a nossa filha Antônia reclamá-lo-á para si. Estou instalado no quarto mais amplo e mais bem exposto ao sol. Façam-me a justiça de reconhecer que o ofereci a Antônia e ela só não aceitou porque o Ribeiro tirou-a dessa família. Eu teria anuído a troca tão contrariado que foi uma sorte aquele impedimento. (Passei a vida a fazer sacrifícios, cuja recordação envenena, alimenta e aumenta toda a espécie de ressentimentos que o tempo avoluma.)

O gosto amargo é herança de família. Muitas vezes minha mãe me falou no corte de relações de meu pai com os meus avós, que por sua vez morreram sem tornar a ver a filha, expulsa de casa havia trinta anos (é a mãe daqueles primos de Marcela que nós nem sequer conhecemos). Desconhecemos em absoluto os motivos que provocaram estas rixas, mas, como não pomos em dúvida que elas fossem justificadas, mantemos o ódio dos nossos antepassados. Ainda hoje, seria incapaz de cumprimentar um desses primos de Marcela, se por acaso nos encontrássemos. É possível viver sem os pais de quem nos separamos, mas já assim não acontece com os filhos e com a mulher. Sei que há muitas famílias unidas, mas quando penso em tantos lares onde dois seres se irritam, se aborrecem a volta da mesma mesa, utilizando o mesmo lavatório, dormindo na mesma cama, reconheço que não há possibilidade de divórcio. Detestam-se, mas não podem fugir cada qual para o seu canto...

Porquê esta febre de escrever que hoje, dia do meu aniversário, se apoderou de mim? Na família, só eu sei que faço setenta e cinco anos. Antônia, Humberto e os filhos que tenho com você, tem sempre, neste dia, o bolo, as velas, as flores... Não foi por ter esquecido a data que, desde há alguns anos, não te ofereço presentes no dia dos teus anos. Foi por vingança. Mais deixemos isto... O último ramo de flores que recebi neste dia foi oferecido por minha pobre mãe. Apesar da doença de coração de que sofria, arrastou-se a custo pela alameda das roseiras para o colher com aquelas mãos já tão deformadas.

Os RibeirosWhere stories live. Discover now