A Epopéia do Preto Livre

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... É a consciência o que nos ata a nós mesmos,

a nossa carne secreta e separada;

e no entanto é ela que rompe nossa solidão e

nos faz comunicar com todo o universo.

Louis Lavelle.

Como pode perceber até o presente momento nessa linha narrativa, que o nosso amado Leonardo estava em uma pindaíba dos infernos. Sendo ele preto, feio, pobre e ainda no ano de 1859; é claro que vida fácil ele não teria. Visto que por volta dos nove a dez anos de idade, já não gozava de abençoada inocência que é comum na idade. Já se viu obrigado a fugir para algum lugar onde os maus não chegam.

Leonardo estava já com um grupo de cappuccinos em direção a escola clerical. Essa agora que seria a sua nova casa; já que a sua mãe de coração tinha morrido e o último desejo dela foi esse. O pequeno era realmente um menino de brilhar os olhos, obediente, manso, e ainda sabia ler perfeitamente... já se via ao longe que o menino tinha vocação para os estudos. A carroça carregava quatro cappuccinos, Leonardo e o Padre Rutten até a cidade de Guaratinguetá na capitania de São Paulo. Lá ficariam na Santa Casa de Misericórdia, regida pela Irmandade dos Passos. Onde lá seriam de grande valia, já que a cidade tinha grande estrutura a época com: igreja, hospital e uma linha férrea. E lá aprendeu filosofia, teologia e principalmente música. Mas não optou pelo celibato clerical, mais o praticou durante muitos anos por amor a Cristo.

No seu aniversário de quinze anos ganhou do Padre um violão e uma flauta. Ele mesmo tocava flauta, instrumento que já foi muito estimado em outras épocas, não o sendo atualmente como outrora. Os velhos aqui da cidade, ainda hoje, se lembram do famoso Calado e das performances, uma das quais - La Fuite en Égypte - é uma lembrança emocionante para os curvelanos que estão a roçar pelos setenta.

Na sua simplicidade de nascimento, origem e condição, Leonardo dos Anjos Ribeiro acreditava-se músico de certa ordem, pois, além de tocar flauta, compunha valsas, tangos e acompanhamentos de modinhas. Suas principais inspirações foram Hector Berlioz, Johann Strauss, Francisco Manuel e o próprio Dom Pedro I, com o Hino da Independência, caso o leitor tenha interesse em ouvir.

Uma polca sua -"Caça a mágoa" - e uma valsa -"Choro de um coração de pedra" - tiveram algum sucesso, a ponto de vender ele a propriedade de cada uma, por cinquenta mil-réis, a uma casa de músicas e pianos na rua dos italianos.

O seu saber musical era fraco; adivinhava mais do que empregava noções teóricas que tivesse estudado.

Tomou gosto pela arte logo cedo na terra do seu nascimento, em cujas as festas na igrejinha do rosário a flauta brilhava. Embora gozando dessa raiz na arte, nunca quis ampliar os seus conhecimentos musicais. Ficava na "artinha" de Francisco Manuel, que sabia de cor; mas não saíra muito dela, para ir além.

Pouco ambicioso em música, ele também o era em todo o resto de sua vida. Desgostoso com ganância medíocre. Na pequena cidade, um belo dia, aí pelos dezoito anos, aceitara o convite de um engenheiro francês que, por aquelas bandas, andava, a explorar terras e terrenos "diamantíferos". Todos julgavam que o ser misterioso de língua embolada, andasse fazendo isso; a verdade, porém, é que o sábio francês fazia estudos desinteressados. Fazia puras e platônicas pesquisas geológicas e mineralógicas. O diamante não era o fim dos seus trabalhos; mas o povo, que teimava em ver, pelos arredores da cidade e no limite dos cafezais, o ventre da terra cheio de diamantes, não podia supor que um francês que levava a catar pedras, pela manhã e até a noite, tomando notas e com instrumentos rebarbativos, que não estivesse com tais gatimonhas a caçar diamantes. Não havia meio do "seu" Mister ou do Leonardo convencer a simplória gente do lugar que ele não queria saber de diamantes; e dia não havia em que o súdito de Sua Graciosa Majestade não recebesse uma proposta de venda de terrenos, em que forçosamente havia de existir a preciosa pedra abundantemente, por tais ou quais indícios, seguros aos olhos de "garimpeiro" experimentado.

Os RibeirosWhere stories live. Discover now