SESSÃO ANA LUCIA #02

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Roberta simplesmente não gostava do dia que seria a terapia da Ana Lucia. Chegou a tentar colocar outro paciente no lugar, mas se sentiu mal ao fazer, então deixou reservado até conseguir ler os diários. Destrancou a gaveta, pegou o primeiro diário e trancou de novo. Pensou em sentar em sua poltrona, mas se fosse fazer isso, queria se sentir o mais confortável possível, logo se sentou no sofá, deixando seus sapatos no chão, colocando os pés no alto e ajeitando as almofadas na coluna. Abriu o diário, reconheceu a letra e começou a ler.

"Olá doutora!" - Roberta revirou os olhos - "Não revira os olhos" - Roberta riu - "Como você sabe, esses diários foram escritos pra você, deixando tudo o que sempre quis dizer e nunca consegui.Minha família é grande, composta pelo meu pai, mãe e minhas irmãs, Ana Carmen, Ana Rita, Ana Maria, Ana Lucia, que sou eu e Ana Clara. Meus pais sempre quiseram uma família grande e a cada ano, sempre nascia uma de nós, exceto a criatividade para os nomes e ficamos a família das Anas, sendo minha mãe, Ana Júlia. Minha família nunca teve um grande recurso financeiro e fez como todo pobre faz, ou pelo menos a grande maioria: fez um bando de filhos pra alimentar. Minha mãe sempre trabalhou de carteira assinada e nos finais de semana, passava roupa para fora. Meu pai trabalhava com 'bicos', uma semana era montador de móveis, na outra pedreiro, na outra vendedor de bala e o que mais aparecesse. Pelo pouco que pude falar, nota - se que a vida era simples e na maioria dos meses, as contas fechavam, mas não tínhamos luxo, apenas o essencial para se viver com dignidade. Conforme íamos crescendo, minhas irmãs mais velhas iam estudando, trabalhando, ajudando na casa e cuidando das irmãs mais novas. Muitas vezes, elas eram privadas de ter a própria vida, porque tinham que ajudar a minha mãe na passagem de roupa, pois quanto mais gente, mais dinheiro. Fora que tinha manter a casa limpa, tentar adiantar a comida, manter tudo organizado e sem bagunça. Minha irmã mais velha, Ana Carmen, aos 16 anos, trabalhava e estudava e assim que completou 18 anos, saiu de casa. Inicialmente morou com uma amiga e quando começou a ganhar um pouco melhor, passou a morar sozinha. Não a julgo, pois se eu passasse o que ela passou com meus pais, teria ido embora também. Só queria que ela tivesse me levado, porque muita coisa seria diferente... Continuando: ela disse que não ficou revoltada por não ter tido uma adolescência 'normal', mas ela sempre teve um péssimo relacionamento com os nossos pais, mesmo que nós tenha sido maravilhoso. Ana Rita sempre foi a irmã que chamamos água de batata. Sem graça, sem ambição, nunca fez nada demais na vida, sempre ficou na aba da mamãe e quando tinha alguma confusão ou briga de família, ficava do lado da mamãe, mesmo que estivesse errada. Era defensora da moral e dos bons costumes, nunca saiu de casa, porque sempre alegou que mamãe precisava de cuidados e depois que o papai morreu, de companhia. No entanto, sempre achei isso uma grande besteira e ela sempre teve medo de lutar e de ficar só. Ana Maria, a irmã que você conheceu, já nasceu fofa e não importa o que a vida faça com ela, ela nunca perde a essência. Gosta de coisas nerds, assim como eu, muito estudiosa e se deixasse, devorava um livro por dia. Batia de frente com meus pais com seus pensamentos além do seu tempo, feministas e empoderados e gritava com eles, dizendo que eles tinham pensamentos retrógrados. De uma certa forma, eu os entendia, porque eles foram criados em outra época, mas ele se recusavam a ouvir minha irmã, queriam manter a mente fechada ou até mesmo, se recusar a respeitar o direito do próximo, isso eu não entendia, nem aceitava. Desconstrução é algo que leva tempo e fico feliz de ter aprendido tanto com ela. Ela nunca saiu de casa, mas não por falta de vontade e sim, porque queria juntar dinheiro. Aturou Ana Rita, piadas dos nossos pais, continuou estudando, conseguiu bolsa de estudos na faculdade, fez curso de línguas e sempre quis ser mochileira na Europa e até onde eu saiba, está juntando dinheiro para isso, com a sua fé inabalável. A próxima da lista seria eu, mas não falarei de mim agora. Vai ficar no mistério, sua danadinha." - Roberta gargalhou, lembrando da entonação de quando falava isso. -"E por último: Ana Clara. A irmã mais afastada de todas e a mais mimada. Os nossos pais não mediam esforços para fazer suas vontades, mesmo que isso custasse algo para uma de nós. Sempre com seu nariz em pé, se achava melhor do que nós e respondia qualquer coisa com desdém. Antes que ache que estou dizendo isso porque ela é irmã mais nova e normalmente, irmãs mais velhas sentem ciúmes, vou te contar uma história. Uma vez minha irmã mais velha precisava de um dinheiro para algo importante e na época, ela ainda não trabalhava, minha mãe disse que não tinha e ela compreendeu, como sempre. Ana Clara se apaixonou por uma calça rasgada e estilizada que custava em torno de duzentos reais. A gente tinha plena certeza que ela não compraria. Sabe quanto tempo minha mãe teria que passar roupa para conseguir comprar a tal calça em questão? Pois bem, na semana seguinte minha mãe comprou, sabe - se lá Deus como, e minha irmã ficou toda feliz. Ana Clara engravidou cedo e Ana Rita cuida das duas, da irmã e da sobrinha.Meu pai não era velho, mas sempre teve uma vida difícil e com isso, acabou morrendo cedo. Teve problemas de coluna, joelhos e coração. Sua pressão nunca era estável e um dia seu coração não aguentou tanta pressão, principalmente da vida. Meus pais nunca diziam eu te amo constantemente, mas vivam um para o outro. Agradando um ao outro como conseguiam e o amor deles era real. Meu pai tinha um amigo, que já fazia parte da família, o conheceu em um do seus trabalhos. Ele aparecia lá em casa, sem avisar, mas era sempre bem vindo, porque era da família. As vezes a presença dele lá era insuportável, porque parecia que ele não tinha casa e depois que meu pai se foi, ele nunca ia embora."

Roberta tinha a sensação que falhara com Ana Lucia e ler seus diários a deixava ansiosa, porque conseguia entrar na sua mente e poderia entender um pouco melhor o que acontecia com ela, mesmo que fosse tarde demais.Se levantou do sofá, guardou o diário, fez um café e esperou sua próxima paciente.

SESSÃO DE TERAPIAWhere stories live. Discover now