SESSÃO ANA LUCIA #03

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O ritual era feito lentamente. Primeiro: Roberta colocava seu café para fazer, retirava o diário da gaveta trancada e o colocava na mesa de centro. Enquanto o café passava, tirava seus sapatos, sentava no sofá de forma extremamente confortável e respirando fundo numa tentativa inútil de se acalmar. Ao ficar pronto, pegava o café, colocava em sua caneca, adoçava-o, sentava novamente no sofá e começava a ler o diário.Hoje não foi diferente.

"Olá doutora, estou tentando lembrar de onde parei. Eu sei que é bem fácil, porque é só ler a página anterior do diário, mas não quero reler o que escrevi e minha cabeça está confusa e doendo, então quero tentar lembrar. Sabe, queria que a minha cabeça se calasse, ficasse quieta e por nunca ficar que cogitei a ideia de dar um tiro nela, mas desisti por dois motivos: 1) não sei onde arrumar uma arma e 2) daria muito trabalho para minha mãe limpar e convenhamos, ela já teve uma vida difícil. Ah! Lembrei! Terminei falando do amigo do meu pai. Gostaria de falar algumas coisas antes de começarmos: não quero chamá-lo pelo nome, logo o chamaremos de "o amigo". Sei que está me analisando"- Roberta estava - "acho que é mais forte que você, porém compreendo, porque é seu trabalho. Outra coisa é: eu não sei exatamente as datas e os períodos, tudo parece confuso, inclusive a linha do tempo, então o que for dito aqui são datas ou períodos estimados. O amigo era bem apessoado, era não, é. Ele não morreu, eu sim... voltando.. é bonito, alto e apesar de ser muito magro, tinha uma certa elegância, seu cabelo é liso, loiro, raspado nas laterais e na parte de trás, ele é inteligente, articulado, lê muito e fala de tudo um pouco. Sempre achei estranho ele não conseguir um emprego melhor, mas quando questionado sobre isso, ele apenas respondia: "Não dei sorte." Tinha uma forma de falar diferente, porque sua voz era grave, baixa, falava extremamente com calma e sempre olhava nos olhos, às vezes de maneira intensa demais. Ana Rita, a irmã água de batata, que ainda mora com a mamãe e puxa saco, caso não lembre quais são as irmãs, era e ainda é, apaixonada por ele, mas ele nunca deu atenção a ela.Ele trabalhou com o meu pai, durante o período que ele carregava móveis e montavam e foi assim que se conheceram. Meu pai sentiu uma dor nas costas, ele ajudou montando quase tudo sozinho e como agradecimento, meu pai pagou seu almoço. A conversa foi tão boa, que pareciam que se conheciam por anos e a noite, meu pai o levou para jantar lá em casa, apresentando-o para a família. Acho que eu tinha uns treze anos, minha irmã mais velha, Ana Carmen, aquela que saiu de casa aos dezoito, então, na época devia ter uns dezesseis, porque lembro que ela já estudava e trabalhava meio período e o amigo reclamava com meu pai, quando ficou mais íntimo para falar certas coisas, que lugar de mulher, principalmente na idade dela, era em casa, que estava muito cedo para tomar rumo da própria vida e por conta desses comentários, o meu pai brigava ainda mais com a minha irmã, que já tinha seus motivos para isso. As únicas que gostavam dele era a Ana Rita e minha mãe, de resto, todas olhavam para ele de forma atravessada, Ana Carmen, mais do que todas nós, inclusive olhava assim para nosso pai também. Nós temos problemas de confiar em pessoas assim que conhecemos, pelo menos algumas de nós, mas admito que fiquei impressionada com a Ana Clara, a mais nova e mimada, também não gostar dele. Toda vez que ia lá em casa, minha mãe o tratava como rei, comida farta e com isso, ele ajudava com a comida em casa, porque se sentia na obrigação, já que comia também. Meu pai tentou fazer algumas objeções, sem sucesso. Ele era e é convidado pra tudo da família, todas as comemorações, mesmo quando a gente não queria, era inconveniente, querendo dar palpites onde não era chamado e quando rebatíamos, nosso pai mandava a gente se comportar, porque ele era mais velho e tinha razão. O amigo nem era tão mais velho, devia ter seus vinte e três anos e fiquei pensando como eles conseguiram ser amigos, apesar da diferença gritante de idade, o que eles poderiam ter em comum, para ter essa amizade tão forte? Ana Carmen, Ana Maria, Ana Clara e eu, acabamos descobrindo depois.Roberta, minha cabeça está doendo muito, eu não sei o que é, acho que vou me deitar um pouco e tentar dormir. Tenho dormido pouco desde.. deixa pra lá."

Tinha algo ali, Roberta via que sim. Ela poderia ler os diários em apenas um dia, mas preferia ler nos dias que seriam as sessões, respeitando o último pedido de sua paciente.

SESSÃO DE TERAPIAWhere stories live. Discover now