Capítulo 2 - Helena

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Você não faz a mínima ideia de quem é Helena e nunca gostou de mulheres, mas quer beijar a boca dela agora.

— Bom, não? — Guilherme pergunta, lambendo discretamente o melado dos lábios com uma cara de prazer que te fez engolir a seco enquanto assente.

Mas, sim, pelo amor dos deuses, aquilo está incrível.

Você sabe que está sendo mal educado. Existe uma regra social velada de nunca comer na casa dos outros a quantidade que você comeria em casa, independente da sua fome. Mas, não pela primeira vez, você manda a sociedade ir se foder e enche a boca com mais uma garfada de panqueca quentinha cheia de pedaços de fruta. Está com uma fome absurda e pouca vergonha na cara. Além disso, aquela panqueca...

Manjar dos deuses.

— Helena cozinha maravilhosamente, já me engordou uns três quilos. — ele comenta, cutucando a barriga meio exposta e você pensa em bater naquela vagabunda sarada.
Três quilos de massa magra não conta, seu desgraçado...

— Helena é a sua namorada? —você pergunta como quem não quer nada, embora seu gaydar já tivesse apitado, tomando uma xícara disfarçada e forçada de café.

Ah, como você detesta café...

— Não, Helena é a minha ajudante. — ele esclarece e você tenta não sorrir, aproveitando que está com aquela coisa horrorosa na boca para manter o semblante sério. — Na verdade, ela está mais para meu anjo, já teria morrido de fome se não fosse aquela mulher. — diz com certo carinho.

— Você não cozinha? — questiona, tentando não soar muito julgador.

— Sim, pipoca de micro-ondas e brigadeiro. No mais, sou um completo desastre e quase coloquei fogo na casa duas vezes. — ele diz e você se vê rindo com ele. — Mas você falou como quem cozinha.

Droga, você soou julgador então.

— Eu me viro. — você responde com modéstia, dando de ombros. Mas vê nos olhos semicerrados dele que não acredita em você.

Garoto esperto.

— Se vira quanto? — ele pergunta com um sorriso discreto de quem te pegou no meio da mentira, mas é educado demais para se gabar por isso.

— Certo, eu trabalho em um restaurante no Centro. — você admite antes de se corrigir com o que deve ter sido ume careta de desgosto feia. —Digo, trabalhava.

— Você saiu?

— Não, me chutaram. — você confessa com um sorriso largo de ironia, enquanto manda outra garfada de panqueca.

O rosto dele muda para um solicito e gentil.

— Sinto muito. — ele diz baixo e provavelmente com sinceridade.

Você abriu a boca e já abanava as mãos para dispensar o assunto quando aconteceu.

Os sons do inferno voltaram.

Lá da sala o cachorro começa a latir novamente, criando quase um eco dolorido nos seus ouvidos. Sua vontade é de apertar as têmporas e chorar, mas então se lembra que está sentado com o dono do bastardinho e aquilo seria mais do que mal educado. Então você se vira para ele pronto para abrir um sorriso amarelo e fingir que não ouve nada quando percebe:

Ele está apertando as têmporas.

E chorando.

— Eu não aguento mais, eu vou morrer. — ele exclama, com a voz embargada de um choro real.

E você não faz a mínima ideia do que fazer.

— Você está bem? — essa provavelmente não foi a pergunta mais inteligente da sua ilustre vida, mas foi a única que ocorreu a você.

— Não... — ele murmura dolorido. — Deus me perdoe, Shoyo é lindo e fofo, mas está tentando acabar comigo. — confessou. — Ele late para tudo, para os passarinhos da janela, para os eletrodomésticos, para o barulho do chuveiro, para o fogo do fogão. Ontem ele passou a noite inteira latindo para o gato em cima do piano! Eu não sei como os vizinhos ainda não apareceram aqui para chutar a minha bunda!

Você sempre foi péssimo em Artes Cênicas e a sua cara de cu deve ter de denunciado imediatamente.

— Você veio aqui para chutar a minha bunda, não veio? — ele pergunta como uma cara culpada injustamente bonitinha.

— Eu não sei de onde você tirou isso... — você ainda tenta. — eu só queria...

— Açúcar. Para o café. Que você claramente odeia. — ele lança de volta, te deixando sem reação.

Você não sabia mais se era um mentiroso extraordinariamente medíocre ou se o garoto era perceptivo ao ponto do assustador, e nenhuma das alternativas parecia boa para você.

Os latidos continuam e vão se tornando cada vez mais agudos e repetitivos.

— Com licença, eu preciso resolver isso... — ele murmura ao se levantar e sair da cozinha sem dizer mais nada.

Você permanece imóvel na cadeira, sem saber muito o que fazer a partir daí. Continuar comendo sem ele ali não pareceu o certo. Ir embora sem se manifestar, também não. E ficar lá atrapalhando o que quer que ele fosse fazer, menos ainda. Tudo se tornou muito complicado de repente ou você está ficando mais burro.

Aposta na última opção.

Resolve voltar para sala e esperá-lo para se despedir com uma desculpa fraca e se recuperar de uma das situações mais constrangedoras da sua vida.

A sala, assim como todo o apartamento, você julgava, fora cuidadosamente decorada e mobiliada. Preto e cinza predominavam, uns pontos ou outros de cor pontilhados por aí. Você não entende nada de decoração, mas parece sofisticado. Só o piano destoava um pouco, sendo marrom e mais antigo do que aquilo tudo.

Você consegue ouvir alguns murmúrios vindos do corredor. Guilherme parecia estar falando com o cachorrinho, e conseguindo acalmá-lo já que os latidos se tornam mais espaçados e baixos.

Acaba se sentando no sofá, apertando os olhos, morto de sono e de vergonha. Porra, o sofá era super confortável, devia pedir o nome daquele decorador e fingir que tinha dinheiro para uma coisa assim. Os latidos parecem ter cessado e o alívio sai em suspiros de você. E isso te lembra de como foi insensível ao achar que estava sofrendo mais com aquilo do que o próprio dono do cachorro. Se você tinha dormido pouco, Guilherme provavelmente não tinha dormido nada e só parecia apresentável porque era bonito demais para outra coisa, mas você tinha certeza que ele também estava completamente exausto, sonolento, cansado e implorando por uma soneca...

Você nem viu quando adormeceu.

**

Caso alguém tenha ficado com vontade de comer a panqueca com frutas da Helena, vou deixar a receita aqui, é a minha preferida, quem sabe vocês não gostam também.

O Garoto da CoberturaWhere stories live. Discover now