CAPÍTULO XIII

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Depois disso há um longo silêncio. Os olhos dela examinam o chão e os meus continuam olhando para seu rosto, ela respira fundo, olha para mim e dá de ombros.

- Dei de ombros — ela diz em voz baixa, e força um sorriso.

Levanto-me devagar e vou até o toca-discos. Pego um dos meus LPs preferidos, uma obscura compilação de musicas do Sinatra de vários álbuns. Não sei porquê gosto tanto deste disco. Uma vez, passei três dias inteiros completamente parada, diante dele, vendo apenas o disco girar. Conheço melhor os sulcos daquele vinil do que as linhas das minhas mãos. As pessoas costumavam dizer que a música era a grande comunicadora, fico imaginando se isto ainda é verdade nesta era póstuma pós-humana.

Fico em pé na frente do disco, escolhendo e colocando as frases que possuem algum significado especial para mim, recortando e colando as coisas que estão no meu coração em um grande álbum imaginário no ar. Deixo o disco voltar a tocar normalmente e sento novamente em frente a Camila. Ela me encara com os olhos úmidos e vermelhos. Coloco a mão em seu coração, sentindo o batimento gentil por dentro. Camila funga e limpa o nariz com a mão.

- Quem é você? — ela me pergunta de
novo.

Dou um pequeno sorriso. Então me
levanto e saio do avião, deixando a
pergunta dela flutuando por lá, ainda sem resposta. Ainda posso sentir o eco de seu pulso em minha mão, compensando um pouco a falta de uma pulsação própria.

...

Naquela noite, deitada no chão do Portão 12, acabo dormindo. O novo sono é diferente do antigo, claro. Nossos corpos não se cansam e por isso não descansamos. Mas, de vez em quando, depois de dias ou semanas de consciência inexorável, nossas mentes simplesmente não conseguem mais carregar tamanho peso e entramos em colapso. Nós nos permitimos morrer, desligar e não ter pensamentos durante horas, dias ou até semanas. Qualquer que seja o tempo necessário para recarregar os elétrons de nosso id e nos manter intactos por mais um tempo. Não há nada de adorável ou de sereno nesse processo; é feio e compulsório, um pulmão artificial para os chiados falsos de nossas almas.

Mas, esta noite, algo diferente acontece. Eu sonhei. Um sonho subdesenvolvido, sombrio e meio desbotado como os filmes antigos, vejo cenas da minha antiga vida passarem pelo vórtice do meu sono. Figuras amorfas caminham por portas que derretem e entram em salas escuras. Será que estou completamente enraizada ao que veio antes? Ou posso escolher outro caminho? Acordo olhando para o teto lá no alto. Minhas memórias, vazias como sempre foram, tinham evaporado completamente.

...

Estou olhando para o teto do aeroporto novamente. Coloco o último pedaço do cérebro de Shawn na boca e mastigo, mas nada acontece. Cuspo como se fosse uma cartilagem. A história acabou. A vida se foi. Descubro que meus olhos estão queimando de novo, suplicando por lágrimas que meus canais lacrimais não podem mais prover. Sinto como se tivesse perdido alguém muito querido. Um irmão. Onde estará a alma dele agora, eu penso. Será que sou a vida após a morte de Shawn?Finalmente caio novamente no sono. Estou na escuridão. As moléculas da minha mente ainda estão dispersas, e flutuo por uma espaço escuro e oleoso, tentando pegá-las como se fossem moscas. Toda vez que durmo, sei que talvez possa não acordar mais. Como alguém pode achar que vai acordar?  Talvez seja por isso que só durmo algumas horas por mês. Não quero morrer de novo.

Acordo com o som de gritos. Meus olhos se abrem rapidamente e me sento. O som vem de longe, mas não é da Escola. Falta o pânico lamurioso dos cadáveres que ainda respiram por lá. Reconheço o fogo desafiador desses gritos, a esperança inexorável frente a inegável falta de esperança. Fico em pé e corro o mais rápido que uma zumbi já correu.

Minha namorada é uma zumbiWhere stories live. Discover now