CAPÍTULO XX

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A chuva que cai vai ficando empossada em nossos pés e percebo que Camila está tremendo um pouco. É uma noite quente de primavera, mas ela está ensopada e a cabine do velho conversível é um túnel de vento. Pego a saída seguinte da estrada e entramos em um silencioso cemitério de casas de subúrbio. Camila me olha com dúvida. Posso ouvir seus dentes batendo. Dirijo devagar pelas casas, procurando um bom lugar para passarmos a noite.

Acabo parando em uma pequena rua sem saída, ao lado de um Plymouth Voyager enferrujado. Pego Camila pela mão e a levo até a casa mais próxima. A porta está trancada, mas sua madeira podre cede facilmente com um chute. Entramos no aconchegante e relativamente aquecido lar de uma família morta faz tempo.

Há velhas lanternas Coleman espalhadas pela casa e, quando Camila as liga, passamos a ter uma iluminação frágil, típica de um acampamento, mas que é estranhamente reconfortante. Ela anda pela cozinha e a sala, examinando brinquedos, pratos e pilhas de revistas. Ela pega um urso coala de pelúcia e olha nos olhos dele.

- Lar, doce lar - ela murmura.

Depois, pega sua mochila, tira uma Polaroide de lá, aponta para mim e bate uma foto. O flash incomoda um pouco em um ambiente tão escuro. Ela ri da minha expressão de surpresa e levanta a câmera para me mostrar.

- Parece familiar? Roubei da sala dos esqueletos ontem de manhã.

Ela me entrega a foto que acabou de sair da máquina.

- É importante preservar as memórias, sabia? Especialmente agora que o mundo está caminhando para o fim.

Ela põe o olho no visor e vai girando devagar, olhando a sala toda.

- Tudo que você vê, pode estar vendo pela última vez.

Chacoalho a foto em minha mão e uma imagem meio fantasmagórica começa aparecer. Sou eu, Lauren, a cadáver que pensa que está viva, olhando para mim com seus olhos arregalados.

Camila me dá a câmera.

- Você precisa tirar fotos o tempo todo. Se não tiver uma câmera, use sua cabeça. Memórias que você captura de propósito são sempre mais vivas do que as que se captura por acidente.

Ela faz uma pose e diz: - Xísss!

Tiro uma foto dela. Quando sai da câmera, ela estica a mão para pegar, mas puxo mais rápido e escondo atrás de mim. Dou a minha para ela, que vira os olhos. Camila pega a foto e a estuda, colocando a cabeça de lado.

- Sua compleição parece melhor. A chuva deve ter limpado você um pouco.

Ela baixa a foto e olha para mim por um momento.

- Porque seus olhos são assim?

Olho para ela sem entender.

- Assim... como? - Pergunto.

- Dessa cor uma mistura de verde e cinza. Não parece nada com os olhos dos cadáveres, não são enevoados nem nada parecido. Porque são assim?

Penso um pouco naquilo.

- Não sei. Acontece na... conversão.

Ela me olha tão profundamente que desvio o olhar.

- É um pouco assustador - ela fala. - Parece quase... sobrenatural. Eles mudam de cor? Quando você mata alguém, por exemplo?

Tento não suspirar.

- Acho que... está pensando... em vampiros. - A digo incrédula.

- Ah, é mesmo. - Ela dá uma risadinha e sacode a cabeça.

- Pelo menos eles não viraram reais ainda. Temos monstros demais para nos preocuparmos hoje em dia.

Antes que eu possa ficar ofendida, ela olha para mim e sorri.

- De qualquer forma... gosto deles. Dos seus olhos. Eles são bem bonitos. Assustadores... mas bonitos.

Provavelmente é o melhor elogio que já recebi em minha vida de morta. Ignorando meu olhar idiota que a segue, Camila caminha pela casa e cantarola algo para si mesma.

Minha namorada é uma zumbiDonde viven las historias. Descúbrelo ahora