4. Espírito de natal

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As águas serenas dos rios, lagos e quedas d'guas faziam suavemente um barulho acolhedor porém a nevoenta e obscura floresta nublada entravam em contraste e ainda sim deixavam a atmosfera pesada. Logo se compreendia o porquê, já que um corpo pairava nas pedras do fim do quarteirão, na colina, perto do rio de Sant Klaus. Um corpo feminino, jovem e pálido, com a vida esvaída...

Ao examinar mais o corpo, que estava bastante prejudicado pela água e também aparentava estar ali por no mínimo 3 anos, detalhes começavam a ser encontrados. Era uma mulher de cabelos castanhos, estatura pequena e por baixo da roupa preta de gola alta ela pôde encontrar um colar de cruz, feito o de Valerie...

As marcas em seu pescoço eram também iguais a que havia visto na mesma quando abaixou-se para acariciar o gato. E o gato estava mesmo tão tranquilo em sua presença a cumprimentando como se faz com seus donos, talvez aquele fosse na verdade o gato de Valerie, e por isso ele sabia.

— Isso tudo... Não é sobre mim. — Disse Myra em voz alta, olhando de volta para a outra margem do rio procurando por Valerie que ficara lá por estar amedrontada demais para atravessar. Não conseguia mais vê-la, por mais que passasse alguns minutos gritando por ela. Talvez, ela estivesse amedrontada não por ter um corpo, tampouco pela água. E sim por aquele ser o seu corpo e aquela ser a água que a afogara.

Era 23h49 da véspera de natal, mas Myra finalmente encontrou o algo valioso que Valerie tanto buscava. Talvez sem até mesmo se dar conta de que estava morta, presa na noite mais longa do inverno que para ela perdurava por 3 anos, tentando se libertar e entender o que havia acontecido. Ao entender, olhando em seu reflexo na caixa d'gua que seu rosto era como o de um cadáver quase desaparecendo, e que vivia repetindo aquele estranho devaneio como se tivesse se passado apenas um dia, seguiu em frente e enfrentou o seu destino chegando até o rio porque dessa vez algo estava diferente. Myra, era a sua última esperança.

Os pais de Myra nesse momento a ligam para a desejar feliz natal, e contarem sobre a estranha noite de apagão em Sant Klaus, mas mal sabiam eles que ela havia vivido aquela noite presente e sozinha à flor da pele. A contaram que eles haviam se mudado daquela casa, porque coisas estranhas aconteciam nela principalmente em noites de natal. Como era uma visita surpresa, seus pais não chegaram a contar sobre a mudança e eles nao eram mais tão próximos até que soube do câncer. Mas Myra nunca os contou o que realmente havia acontecido, muito menos o fato de ter se atrasado para sua surpresa de natal não por conta do apagão mas por estar solucionando  um crime esquecido na pequena cidade de forma fantasmagórica. Eles souberam do seu feito, da resolução de um crime arquivado cruelmente sem respostas porque de fato ninguém estava interessado o suficiente, mas nunca souberam como tinha verdadeiramente acontecido.

Aquela casa pertenceu antes à Valerie e sua família, que nunca fora uma garota popular. Sua rotina seguia rigorosamente dois caminhos: a sua casa e a igreja, e nenhum dos dois locais era seguro para uma garota como ela mas era convenientemente fácil para desaparecer por isso. Foi assassinada no dia do seu aniversário, que era junto ao natal. Toda noite da véspera ela vagava pelos arredores, e acendia seu bolo em cima da mesa da cozinha, na esperança de que ela pudesse assoprar suas velas e finalmente descansar em paz como seu pedido.

Mas dessa vez a cidade estava apagada, e a única luz que sobrara era a da vela em seu bolo, e finalmente alguém a enxergou em meio a escuridão. Ela só queria ser encontrada. E Myra era a pessoa certa para isso, porque tinha um dom especial. A casa ficara abandonada e isolada após misteriosamente a família - que nunca fez questão em socializar-  sumir da pequena cidade, e nos anos seguinte nenhuma outra permanecia naquele local.

Após investigarem a causa e suspeitos, concluíram que ela foi morta por seus pais após a descoberta e não aceitação de que a jovem religiosa, era bissexual. Quando encontraram a família da garota e não tinha mais saída que senão confessar, eles insistiam na seguinte frase "Eu não poderia deixa-la ir para o inferno por uma fase de curiosidade e promiscuidade adolescente, mas poderia deixar com que pensassem que ela fosse para isso, desde que soubesse que ela estaria em um lugar melhor do que aqui, se perdendo ao pecado. Agora ela está no céu, salva."

O gato estava na cena do crime no momento e tentou defender Valerie, arranhando o culpado (Seu pai, aue teve a mãe como cúmplice) e correndo para o beco no quarteirão com medo. Sendo assim, indicou o DNA do assassino em suas unhas que ainda permaneciam lá, intactas. Seus pais a enforcaram, jogaram seu corpo de cima da ponte no rio, arrastaram o corpo até a margem novamente e o deitou sobre as pedras. Forjou uma carta de suicídio e deixaram a corda ao lado do seu corpo. Algo totalmente mórbido. Myra mesmo após tantos crimes violentos ainda não tinha vivenciado um dessa forma e nem tão complexos como serial killers, psicopatas e de cunho homofobico. Após isso foi promovida. Depois daquela noite os pais foram condenados, e agora, o espírito de natal na cidade poderia ser resgatado apesar dessa história até hoje ser contada de diversas maneiras diferentes por entre a população, que nunca havia tido um grande caso na cidade tampouco informações sobre eles. Tudo o que eles tinham eram especulações, o blecaute daquela noite jamais fora explicado e o segredo paranormal de Myra ficara entre ela e Valerie para todo o sempre.

Alguns diziam que Valerie era o próprio espírito de natal, outros acreditavam que ela era apenas uma garota qualquer assassinada na cidade. Para Myra, ela era o renascimento de algo diferente, uma esperança. Tanto para a cidade quanto para ela. Foi uma motivadora, para que fizesse seu trabalho da melhor forma por muito mais tempo dando paz para mais jovens, famílias sem esperança, ou almas perdidas após crimes brutais. Era o que sua mãe queria, e era o que Valerie precisava.

Myra foi visitar o túmulo de Valerie ainda naquela noite de blecaute total após a ligação de seus pais, que até então existia sem um corpo dentro. Ela deixou com a moça algumas lágrimas, uma pequena bandeira da bissexualidade o qual fazia com que elas tivessem ainda mais uma ligação, sua gratidão e o seu último maço de cigarro em cima do sepulcro.

— Talvez tristeza eterna seja o preço que precisarei pagar. — Em seguida a neve cai pela primeira vez depois de anos em Sant Klaus e as luzes voltam em cada quarteirão dela até o cemitério.  Iluminando tudo outra vez.

A noite mais longa do invernoWhere stories live. Discover now