31/03

577 28 6
                                    

Música: Nobody - Mitski

*Considere o que está escrito assim no texto como se as palavras estivessem riscadas :) *

Ops! Esta imagem não segue nossas diretrizes de conteúdo. Para continuar a publicação, tente removê-la ou carregar outra.

*Considere o que está escrito assim no texto como se as palavras estivessem riscadas :) *

31/03 - Ela

Você escolheu isso, eu repito na minha cabeça enquanto tento não chorar. Meus olhos estão cheios d'água. Ótimo, estou ficando cega em plena luz do dia. Eles se afastam de mim como se a minha presença fosse indesejável, não, eles se afastam porque o meu roteiro é indesejável, mas é difícil separar criador da criatura quando a ficção é assombrosamente pessoal. Esta é, vejamos, a trigésima rejeição do ano? Hmm, por aí. Assim que eu voltar para Nova York, ligarei para Amanda e darei a notícia. Vamos comemorar o recorde com uma pizza. Sim, comemorar — eu escolhi essa vida, escolhi essa carreira, ninguém me obrigou ou me incentivou (ao contrário, meus pais que o digam), e por isso prefiro celebrar as respostas negativas do que sair reclamando por aí.

Tudo bem, eu esperava um "sim" desta vez? Esperava, como a idiota iludida que sou, e é por causa dessa maldita expectativa que estou falhando em reprimir as lágrimas. Eu deveria levar minha vida profissional como levo minha vida amorosa: sem expectativas e consequentemente sem decepções. Mas não é como se eu não tivesse feito o meu dever de casa: eu tinha estudado todos os filmes que a Lighthouse Studios escolheu produzir e assim eu sabia que o meu roteiro — um drama adolescente nos anos 80 — se encaixava no perfil deles. Minha própria agente disse que não teria como dar errado; Joana tinha tanta fé nesse script que me ajudou a pagar a passagem para Budapeste e os custos com o hotel. Caramba, eu passei meses escrevendo a história durante a madrugada, semanas aperfeiçoando o argumento para porra nenh... Não, não vou reclamar. Vou colocar um sorriso no rosto, me empanturrar de pizza, chorar debaixo do travesseiro e depois recolher os cacos para começar tudo de novo. Como sempre fiz.

Algumas lágrimas escapam dos meus olhos e agradeço aos céus por estar sozinha na sala de reunião. Preciso de uns minutos para me recompor, limpar o rosto e sair daqui com o pouco que me resta de dignidade. Meu celular vibra, e vejo na tela duas mensagens novas. A primeira é da minha melhor amiga:

Amanda Fischer
Arrumei o apê pra te receber amanhã, mulher. Morrendo de saudades! Bjssss
PS: Não ouse voltar sem ter o número de ao menos um gringo gostoso!

Reviro os olhos antes de partir para a outra mensagem.

Joana Dale
Como foi?

Escrevo de volta: "uma merda."

A resposta da minha agente vem segundos depois:

Uma merda espetacular?

pode apostar que sim

Estou orgulhosa!

E não, Joana não está sendo irônica. Ela trata cada fracasso meu como uma vitória e sempre torce para que eu seja extraordinária em ambos. Ela tem um grave caso de otimismo incorrigível, sempre enxergando os "nãos" como os degraus necessários para o tão sonhado "sim." Eu já sou do tipo que vê os fatos como se fossem a gravidade: inevitáveis, invencíveis e impiedosos. Porque não importa o quanto Joana pinte o meu fracasso de cor-de-rosa, a realidade continua a mesma: meu roteiro foi rejeitado. De novo.

Bom, talvez seja hora de enfiá-lo nos fundos da gaveta, junto com os outros, e iniciar um novo projeto. Recolha os cacos, limpe a sujeira, comece de novo.

Saio da produtora e volto para o Solace Hotel, um prédio pequeno de fachada cinzenta e apática. Digo "obrigada" em húngaro (numa pronúncia digna de pena) quando o porteiro segura a porta giratória para mim e entro na recepção do hotel. O interior é surpreendentemente não-cinza: as paredes são de mármore branco e há sofás de couro aconchegantes, desses que você senta e afunda o corpo (sim, eu testei).

Aproximo-me da bancada e o concierge abre um sorriso educado:

— Boa tarde, senhorita Bellini.

— Clara — corrijo automaticamente. — Boa tarde, Tamás. Será que depois você poderia mandar alguém para me ajudar a carregar as malas para o térreo?

— Claro. A que horas exatamente?

— Hmmm... — Tiro o celular da bolsa para olhar as horas. — Vou tomar um chocolate quente no restaurante e depois vou subir para o meu quarto... Pode ser umas 17h?

— É claro. — Tamás anota o horário num caderninho preto.

Agradeço em húngaro, fazendo o sotaque mais ridículo que consigo desta vez, angariando um sorriso espontâneo de Tamás. Missão cumprida, digo a mim mesma. Durante a semana que fiquei aqui, andei percebendo o quanto ele parecia nervoso, perambulando pelo hotel com os ombros tensos, parecendo um soldadinho de chumbo com o uniforme vermelho e o sorriso engessado. Aquele nervosismo todo tinha um motivo, é claro: a estadia de alguns atores famosos no Solace. Rebecca Freeman e Mathieu Alguma-Coisa, semana passada vi os dois com David Deneuve no restaurante do hotel. Rebecca eu duvido que tenha dado algum trabalho ao pobre Tamás, ela é blasé demais para isso. Já o tal do Mathieu... Estourou no ano anterior graças a um premiado filme indie; a fama recente pode muito bem ter-lhe subido à cabeça. Só digo uma coisa, se Peter Feuer estivesse aqui em vez desse cara... Se fosse ele no restaurante naquele dia... Imagino sua educação irretocável e seu sorriso perfeito, sentado não muito longe de mim. Imagino-me pedindo desculpas por interromper seu jantar e dizendo que adorei sua atuação em "Consequências." Imagino-o sorrindo de volta e perguntando alguma coisa, qualquer coisa, se o chocolate quente era bom, como estava a minha noite, qual era o título do livro em minhas mãos. Nós então passaríamos a noite conversando, ele iria para a minha mesa ou eu para a dele, e seríamos os últimos a sair do restaurante porque a conversa estaria tão boa que não queríamos terminá-la nunca.

Suspiro, forçando-me a deixar os cenários que minha imaginação criou. A realidade é inevitável, invencível e impiedosa, lembro a mim mesma. Na vida real encontrei Mathieu e não Peter, e ganhei um olhada indiscreta em vez de um sorriso.

Vou para o restaurante e escolho a mesa de sempre, com a vista para a rua lá fora. Gosto de observar tudo — pessoas, objetos, paisagens, palavras, gestos... É um hábito muito eficaz para interromper o fluxo interminável de pensamentos que costumam inundar o meu cérebro todos os dias, uma canção de ninar para adormecer a minha autoconsciência intransigente, mesmo que apenas por algumas horas. Enquanto espero pela minha bebida, meus olhos acompanham os passantes nas calçadas, pais e filhos, amigos, namorados, seres humanos com passados, presentes e futuros únicos, com histórias e segredos que nunca conhecerei. Saber que existem tantas pessoas no mundo e que não terei a chance de conhecer cada uma delas é como ter diante de mim uma biblioteca imensa, infinita, lotada de livros interessantíssimos e nunca ter tempo suficiente para ler todos. Tanto potencial desperdiçado...

Potencial. Meu roteiro tinha tanto potencial mas... Esqueça isso, Clara, meu Deus, qual o seu problema? Quando eu chegar em casa, vou começar outra coisa e quem sabe essa outra coisa se transforme em alguma coisa... ou acabe virando coisa alguma e aí... Estou pensando demais.

O garçom deixa o chocolate quente na minha mesa, agradeço e pego da bolsa o livro de Olivia Laing ("The Lonely City: Adventures in the Art of Being Alone"), um livro muito apropriado para a minha situação atual: uma jovem que acabou de se mudar para Nova York e que está (que sempre foi) desesperadamente, irremediavelmente solitária. Engulo o líquido sem hesitação, experimentando dor e prazer de uma vez só, o sabor doce na língua aplacando a ardência na garganta. Ou o ardor sobrepondo a doçura. Tanto faz, não importa, nada importa neste segundo a não ser o livro e a xícara em minhas mãos.

i will escape death for youOnde histórias criam vida. Descubra agora