Capítulo III - O Que Diz a Águia? [Parte 11]

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Teve a mesma dúvida que nas duas outras vezes; batia na porta ou não? A formalidade parecia desnecessária, ignorá-la ainda pior. Oi querida mãe, não só a mantenho prisioneira, como nem ao menos vou anunciar minha chegada. Tirar de você a privacidade também, pensou, sentindo-se ridículo. Impotente. Fechou os olhos e respirou fundo, deu uma primeira batida e não teve tempo da segunda, Valéria abriu a porta de imediato. Teve vontade de rir.

— Olá, querido — ela falou, com um sorriso.

Leonel quis abraçar a mãe, mas não se atreveu. Era um direito que deveria reconquistar. Valéria fez um gesto com a mão, convidando-o a entrar. Seguiram até a cozinha, com a longa mesa de madeira e um bule de chá já preparado. Leonel sorriu, sentia falta das estranhezas de sua mãe. Das coisas que ela parecia simplesmente saber. E nunca me perguntou por que eu não só tiro elas daqui. Ela sabe, também. Ele se sentou, esticou o corpo, tentando enxergar escada acima.

— Talvez mais tarde — Valéria falou.

Leonel soltou uma risadinha nervosa. Era a terceira vez que visitava, Raquel recusara-se a vê-lo nas duas anteriores. Voltou o olhar para a mãe, nunca sabia o que dizer. Ela continuava sorrindo.

— Invadimos mais uma cidade outro dia — acabou por desabafar — Eu... não fiz nada. De novo.

A expressão de Valéria tornou-se grave.

— Onde?

— Jinhatef. O povo resistiu e os comandantes atacaram.

Fechou os olhos. Viu o campo de batalha, escutou os gritos desesperados.

— Dessa vez eu nem tentei impedi-los — Leonel enterrou o rosto nas mãos.

— De nada adianta gritar no meio da batalha — Valéria comentou. Esticou uma mão na direção do filho e encostou no seu braço — É antes que você tem que agir, Leonel.

Ele levantou o olhar para mãe. Perdido, uma criança com sete verões de vida em vez de um homem com mais de trinta.

— O que, discutir com meu tio antes de sairmos com o exército? Também não vai adiantar em nada.

Bufou, sentia-se exaurido, mas a mãe apertou de leve seu braço, reconfortando-o.

Uma risada estridente invadiu a cozinha. Mais do que isso, um gargalhar.

— Ai, Leonel, você tanto, mas tanto quis ser rei. Agora tem o título, mas não passa de uma marionete — Raquel adentrou o cômodo, encarou o irmão com um olhar repleto de ódio. — O destino por vezes é gentil.

Leonel se levantou em um salto, não se importando com as palavras da irmã.

— R-raquel! É bom te ver, como você vai?

Pergunta errada.

— Aprisionada, isolada, encarcerada. Você sabe. Não há muito a fazer por aqui exceto pensar em diferentes formas de te matar — ela gesticulou enquanto falava, depois cruzou os braços e apoiou o corpo contra a parede.

Leonel não tinha uma resposta.

— Nossos divertimentos são mesmo limitados — Valéria suspirou. — Gostaria que você continuasse contando o que acontece lá fora, querido.

Ele sorriu para a mãe em agradecimento e voltou a se sentar.

— Zaras tem ficado cada vez mais preocupado. — começou. — A fama das outras organizações tem crescido, ele se sente mais ameaçado e acho que por isso mesmo tem sido tão brutal nessas conquistas.

— Como você pode saber, Leonel? Esteve de fora a todo esse tempo. Talvez o tio esteja massacrando seu povo desde que você virou rei, e nem sabe. — Raquel alfinetou.

Leonel sustentou o olhar da irmã.

— Eu não saía com o exército, mas nunca estive tão desconexo quanto você acha. Algo mudou por agora, ele está nervoso, apesar de não deixar transparecer.

— Então como você sabe? — a princesa cuspiu.

O irmão soltou uma risada desdenhosa.

— Passe vinte anos com alguém que não lhe dá um minuto de paz, e até mesmo Zaras revela seus jeitos — virou-se para a mãe, como se tivesse sido ela a fazer a pergunta. — Ele planeja em excesso, quando está ansioso. "Contra ataca" antes mesmo de ser atingido, tenta prever tudo nos mínimos detalhes.

— Então, as outras organizações estão mesmo ganhando força? — Valéria pareceu interessada.

Leonel deu de ombros.

— Todas crescem com o discurso de me tirar do poder, como se eu estivesse mesmo lá — ignorando uma risada repleta de escárnio da irmã, continuou — A Ordem tem crescido. Já esta presente na maioria das cidades e tem juntado muitos seguidores de todas as raças. O Primeiro Círculo continua agindo muito por debaixo dos panos, tento saber detalhes, mas Zaras não me conta o que descobre.

Valéria assentiu.

— Na época de seu pai, o Primeiro Círculo que era uma ameaça — comentou.

— Nunca soube que meu pai tinha problemas com as organizações — Leonel respondeu, o cenho franzido — Quer dizer, sabia que ele implicava com o tio e a Virtude, mas achava que era só pelo aspecto religioso da coisa.

— Meu Deus, mas você não prestava atenção em nada mesmo — Raquel zombou. — Um pessoal do Primeiro Círculo ficava aparecendo para conversar com o papai, sempre mascarados. Acusavam ele de não impor igualdade entre as raças.

— Mas o papai sempre fez questão de proporcionar isso! — Leonel devolveu, confuso. De fato não se lembrada de nenhum homem mascarado, muito menos os disfarces draconianos que sabia serem usados pelos líderes da organização.

— O Primeiro Círculo não era de confiança, querido. Acusavam seu pai do que fosse para tentar ganhar algum espaço no conselho. Como se Lázaro precisasse do apoio deles.

Leonel olhou da mãe para a irmã. Era possível que desconhecesse tudo aquilo, e elas soubessem tanto? O que eu fazia quando era jovem? perguntou-se, Eu estava prestando atenção no quê para não notar nada disso? Gostava de conversar com o pai, acompanhá-lo em seus deveres reais. Talvez eu não escutasse, não de verdade.

— Os líderes todos mudaram. Antes mesmo de papai morrer — Raquel explicou. Seu tom de voz um pouco mais natural, Leonel teve vontade de sorrir ao reconhecer um traço do antigo jeito de sua irmã, mas conteve-se — E a organização sumiu do mapa. O pai dizia que passaram a agir nas sombras, mas houve um conflito interno e muitos morreram. Tornaram-se poucos, sem muito poder.

— Bom, eles cresceram — Leonel comentou. Fez uma careta. — Ainda não consegui entender o que querem.

— Isso é, fora te matar. — Raquel falou, com um sorriso sádico.

Leonel suspirou e levantou-se outra vez. Abriu os braços, mostrando o peito protegido apenas por uma fina camada de sua armadura de couro escura, facilmente perfurável por uma faca de cozinha.

— Quer saber, Quel? Você fica falando tanto sobre minha morte, porque não tenta? 

Livro 2 - A Sombra, a Música e a Espada [completo]Onde histórias criam vida. Descubra agora