Dos Veces - Interlúdio I: Letra D

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Eu me sentia extremamente ansiosa para a apresentação.

Os grandes homens da sociedade estariam na platéia. As mais importantes cantoras do ramo da ópera já faziam presença entre os primeiros assentos. Seria minha grande noite. Minha chance mais importante para enfim ter meu reconhecimento como cantora.

Minha mãos suavam quando eu subi no palco. Fui recebida por aplausos. Sorri e respirei fundo até que encontrei no meio da multidão os olhos gelados dele.

Eram diferentes do restante das pessoas. Ao invés de emoção, havia um completo vazio. Deixei que minha atenção pousasse sobre ele por uns minutos. Eu mal imaginaria tudo que esses poucos segundos, encarando aquele homem tão irreverente na noite da minha grande estréia no ramo do canto lírico, causariam.

Na semana seguinte, ele reapareceu. Eu estava menos nervosa. Seria minha segunda apresentação. A primeira havia me retornado elogios à beça. Minha alma ficou feliz com aquilo. Eu finalmente senti que poderia realizar o meu sonho.

Meus instintos novamente foram sugados até ele. O olhar permanecia impassível. Eu tentava enxergar algum resquício de emoção, mas o máximo que ele transparecia era uma mexida de bigode. Sentia-me desafiada por ele. A única pessoa da plateia que não esboçava sentimento algum.

Eu não seria boa o suficiente?

Na minha terceira apresentação, ele não estava mais lá. Incontrolável e por razão desconhecida, senti-me mal. Por que eu estou triste com isso?

No dia da minha quarta apresentação, o salão estava lotado como nunca. As portas estavam abarrotadas de gente para me ouvir cantar.

Meu peito se encheu de alegria.

Mas ele não estava lá.

Fui até o camarim, ao fim da apresentação.

1879. A sociedade teria que me aceitar. Seria uma mulher da vanguarda na ópera. Eu estava me esforçando para isso.

Meu devaneio foi interrompido por uma batida na porta.

- Entre. - eu falei naturalmente, sequer imaginando que quem fosse entrar seria ele.

- Boa noite, madame. - ele começou. - Chamo-me Alfonso Herrera. Tenho um pedido a você. Franzi meu cenho ao ouvir sua voz. Arrepiei-me ao ver que era ele. Meu coração pareceu desafogar por um instante.

- Qual é seu pedido? - perguntei, querendo desfazer o mistério. O que ele poderia querer?

- Qual é o seu preço?

- Como? - estava quase me sentindo ofendida, quando ele retomou a fala.

- Quero que trabalhe para mim. - ele explicou. - Pago o quanto for necessário. O trabalho é simples: todas as noites você deve cantar para mim. Prepararei uma sala em minha casa apenas para isto.

Eu me recordo de ter negado e achado um absurdo. Por que eu faria isso? Por que eu deixaria tudo para cantar para uma única pessoa?

Mas quando me dei conta, já estava em uma sala enorme, com a platéia unitária. Agora os únicos olhos que haviam sobre mim eram os dele. Ainda vazios.

Em uma noite, entretanto, algo diferente aconteceu.

Finalmente um resquício de vulnerabilidade transpareceu no olhar dele, assim que eu terminei o canto. Meu coração pulsou em descompasso com esta constatação.

Isso se repetiu mais vezes. E depois se tornou frequente. Em uma das noites, ele chegou a sorrir. Senti meu peito aflorar. O que eu estava sentindo?

Duas semanas depois, teria o início da melhor coisa que já me aconteceu.

Ao final de um última canção, quando eu estava prestes a sair, ele finalmente me fez sua. Eu não sabia o quanto necessitava daquilo, até sentir seu lábios correrem por toda minha pele. Meu vestido vermelho estava jogado sobre o ecrã de veludo. Suas mãos pareciam mágicas, fazendo-me delirar.

- Eu te amo. - ele confessou em uma das noites procedentes àquela. - Você salvou minha vida. Ouvir sua voz me resgatou do abismo. Não podia deixar de tê-la.

Mas eu também amo você. Por que está triste, meu amor?

Meu vestido vermelho estava novamente em meu corpo. Mas agora não mais pela cor tecido. Estava ensopado de sangue.

Meu grande amor estava sobre mim, mas os olhos voltaram a ser vazios como a primeira vez que os vi.

- Alfonso! - eu gritei, tentando animá-lo. - Fale comigo! Não me deixe só! - de repente o desespero tomou conta de mim. Ele fechou os olhos gradativamente.

- Estaremos juntos na eternidade. - foi a última frase dele. Levei minha mão ao peito, que agora doía de maneira imensurável. Eu estava ferida.

Eu estou morrendo?

Fechei os olhos. Agora pude vê-lo de novo. O olhar dele estava mais vívido que nunca.

Juntos na eternidade.

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