C A P Í T U L O 01

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    A neve é tão bonita…

     Tão branca e pura. Tão intensa e delicada, suave na brisa. O quão belo é o contraste da neve com cores vivas? A neve e o sangue… tão belo, tão delicado. Mas tão intenso e devastador.

     Eu me pergunto; quantas pessoas nesse mundo reparam em sua beleza? Eu não tenho essa resposta. Mas sei que já existiu alguém que não apenas contemplava a beleza perigosa da nevasca, mas que era tão bela quanto.

     Ela nasceu a mais de mil anos atrás, décadas após o cometa vermelho; cuja energia devastadora marcou o céu com a tempestade que ele traria. Sangue iria chover. Mas de onde, exatamente?

     Como toda criatura de carne, ela nasceu do sangue na maior nevasca que seu reino conheceu. O frio devastador tirou a vida de sua mãe e marcou o destino daquela menina que logo tornou-se uma mulher.

      Pele com a suavidade de uma rosa que representa firmemente a cor de seus lábios, olhos tão azuis quanto o céu sem nuvens e cabelos negros como o céu sem estrelas. Não apenas a mais gentil, mas também a mais bela do reino.

     Mas a vida é cruel e a inveja ameaçava destruí-la. A garota era a sétima filha de um rei e encontrava-se aos seus 18 anos quando foi prometida a casamento ao príncipe romeno, cujo reino enfrentava ameaças búlgaras e magiares. Um reino cujo desespero era tão grande que mandou sete virgens para a floresta em plena lua cheia.

     Nenhuma retornou.

     Mas era para isso que Dulce, a princesa, estava a caminho. Era para isso que mulheres serviam; para ser uma cadela submissa de obediência, sexo, procriação e babá. Ou talvez ainda seja…

     Não existe muito respeito pelas mulheres em pleno século XXI, então, a mais de mil anos atrás no tempo medieval, com certeza era certo os olhos humanos mandarem a princesa para um casamento arranjado. E ela não contestou. Tudo que poderia fazer da carruagem era observar a neve.

     O ápice de inverno lhe trazia paz. E pelos fechos da cortina na carruagem escura, a luz entrava e iluminava seu sorriso inocente ao observar a paisagem de fora. Como os flocos de neve dançavam sobre a brisa, rodopiando e acumulando-se ao tapete naturalmente branco no chão.

     O frio lhe trazia felicidade. Dulce sempre foi atraída pelo calor, mas era no frio que sentia-se… livre longe de todas as amarras opressoras da sociedade machista e da religião abusiva na época.

     Sua mãe morreu por não suportar o frio da noite em que deu-lhe vida. Seu povo sempre dizia-lhe que, talvez por isso, o inverno combinava com ela. Sua beleza parecia sempre mais realçada e seus olhos brilhavam em felicidade. Talvez a alma de sua genitora estivesse naqueles ventos de inverno a protegendo.

     E Dulce jamais negou. O inverno a agradava. Ela tinha ciência de sua beleza e gostava de se comparar com a neve. Tão bela quanto a neve pura no ápice invernal.

     Mas o que ninguém desconfiava é que a princesa se parecia mais com a estação além da beleza.

     Branca como a neve, pura como a brisa, linda como o inverno. Mas no fundo de sua alma, escondida dos padres e bispos, de seu pai e sua cruel madrasta, havia a crueldade fria do inverno implacável que ceifava a vida de todo aquele que não conseguia escapar de suas garras congelantes.

     Dulce era estável e vela como a neve calma. Mas também era cruel e agressiva como a nevasca. E ninguém jamais reparou. Ninguém jamais observou.

     Afinal, porque observar mais atentamente uma mulher que obrigavam a ser perfeita? Ninguém se importa com os desejos femininos. Ela só deveriam servir.

     E com esse pensamento, ninguém reparou no olhar da princesa ao encarar a neve e observar o quão belo era seu contraste branco com o sangue vermelho de seus soldados. Como era fácil passar a lâmina prateada de uma espada pela barriga de um dos guardas da escolta e esguichar aquele fluido pelo ar, acertando os flocos gelados antes de manchar o chão branco.

     Tão preciso, tão belo. Dulce sorriu amplamente para a beleza do que via e mal escutava os gritos de agonia de seus soldados serem mortos em uma emboscada. Ela queria mais daquilo. Queria ver mais sangue naquela neve, mais daquela beleza.

     Mas não teve. Os gritos haviam cessado, a carruagem estava parada e apenas os cavalos mostravam a agitação do que aconteceu.

— Fique aqui, majestade! — O lorde que a acompanhava chamou sua atenção. Mas seu olhar só conseguiu admirar o aço forte e preciso de sua espada sendo sacada.

     Como ela achava belo aquele som. Como a luz refletia seu aço brilhoso como se fosse prata. Ela viu brevemente seu reflexo. Os olhos azuis cintilantes lindamente masculinos e vermelhos como o sangue.

     Dulce piscou. Vermelhos?

     Sim, tão vermelho quanto o sangue que jorrou do nobre quando seu pescoço foi perfurado por um aço empunhando com mais velocidade. Quanto sangue havia dentro daquele corpo humano ao manchar todo o interior da carruagem e, inclusive, sua pele perfeita.

     Dulce mal teve tempo de entender a situação ao ser arrancada de dentro daquelas proteções de madeira refinada e encarou seu sequestrador com uma surpresa inocente. Era como uma artista pintando a paisagem que admirava até alguém arrancar o quadro de sua mão.

     Mas com o passar dos minutos, de sua respiração sentindo a violação do frio de inverno e seu coração assustado com a situação, ela reparou no homem a sua frente. Magro pela escassez de alimento da estação cruel, pálido e com rugas firmes ao redor dos olhos, cuja parte esquerda tinha uma selvagem cicatriz que deixava-o cego. Os cabelos castanhos e compridos como a barba suja de sangue.

      Dulce só conseguiu perceber que aquele senhor não combinava nem um pouquinho com a beleza genuína do inverno antes de ser golpeada na cabeça e perder a consciência.

      A Grande Mãe tem um jeito peculiar de lidar com a vida, afinal…

      Duas garotas foram arrancadas de seu suposto conforto pela crueldade do destino. Uma é uma princesa, ainda mais bela do que as descrições de contos de fadas que surgiram séculos depois. Foi prometida a casamento a um príncipe como união adequada de uma aliança contra invasões estrangeiras.

     Mas um dia antes de conhecer seu noivo, sua carruagem foi emboscada em um bosque estreito e a garota foi pega pelo inimigo.

     A outra, nada mais era do que a filha de um nobre, o conselheiro principal do futuro sogro de Dulce. Mais imperfeita que perfeita, cuja vida foi mandada para a floresta em plena lua cheia onde ela foi pega por bestas comedoras de carne humana e jamais foi vista.

     Será que sete é um número ruim? Um número de azar? Que magia obscura poderia percorrer esse maldito número?

     Ambas eram a sétima de uma mulher cujo destino parecia ser cada vez mais incerto. Em uma lua cheia, a sétima filha de um lorde foi pega por bestas. No dia seguinte, a sétima filha de um rei foi pega pelo inimigo.

     Mas nem tudo tinha acabado. Sete não era o único número de azar.

     Após a meia noite, no ápice da madrugada que rodeava a Rússia, as bestas que caçavam na montanha estavam furiosas. Seus rugidos povoaram toda a região.

     Era a mulher que nasceu na noite do cometa. A sétima filha, não de um humano, mas de uma fera. Era a mulher cujo destino estava ligado ao meu muito mais do que outras.

     Era a sétima filha de uma besta e terceira mulher a encontrar os braços cruéis da vida; Arya!

Anjo SombrioWhere stories live. Discover now