22 ▪︎ A Invasão

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Pela manhã, o nome de Susana estava em todas as manchetes ao lado de "Martín", o nome fantasia de Werá. Ela às vezes repassava os fatos em sua mente para não se perder entre o que era real e o que era fingimento. Aquilo tudo era, sem dúvidas, a coisa mais bizarra que aconteceu em sua vida, e olhe que sua mãe morrera de overdose no banheiro de casa. Ela estava de volta ao programa que arruinou sua vida, sua casa pegou fogo e agora tinha um relacionamento falso com um cara indígena. "Chupa, Walcyr Carrasco!", sorriu consigo mesma enquanto tentava ignorar os sedentos fãs entre os clientes do shopping. A sorveteria dobrou seu faturamento desde que o primeiro episódio do programa tinha ido ao ar, todos queriam saber como era a vida de famosa ou como eram os ensaios, mas agora, com essa coisa do "relacionamento com Martín", o ritmo estava ainda mais insano, estimava um lucro triplicado praquele mês.

O momento mais divertido do dia era quando precisava sair para ensaiar. Sua irmã chegava e ela pulava por cima do balcão para deixar o estabelecimento e ir pra emissora. Mas, o que deixava tudo interessante era o fato de Susana fazer isso ao som de gritos, assobios e aplausos das pessoas na praça de alimentação. Aquele dia não foi diferente: despediu-se dos fãs com acenos e sorrisos enquanto desviava das perguntas sobre Martín. Os ossos do ofício da vida de uma cantora famosa nem eram tão desafiadores assim, mas ela sabia que tudo era só por enquanto. Respirou fundo. Lembrou da mãe, do pai, da solidão de não poder confiar em ninguém porque, no fim das contas, todos queriam algo que ela tinha a oferecer. Seus pensamentos sombrios deram lugar à gratidão aos céus pela irmã maravilhosa que tem e por cada pessoa ali gritando seu nome. Era esse momento do dia que fazia tudo valer a pena e o vazio ser preenchido. Não queria admitir pra ninguém, mas, bem no fundo, ela sabia que teria o dinheiro pra reforma da casa em alguns meses, o programa garantia boas publicidades mesmo que você ainda estivesse nas oitavas de final. Talvez fosse egoísta dizer, mas não aceitou o acordo para ganhar dinheiro e, sim, para ganhar o concurso. Era fato, ela sabia e não poderia negar para ninguém que perguntasse: ela queria ganhar. Teria uma difícil decisão para tomar quando chegasse a final, mas tudo que importava agora era chegar lá, e isto já estava garantido. Não se sentia culpada por usar Werá, ele também tirava proveito da situação. Seria um jogo divertido e temporário.

Chegando ao estacionamento do estúdio, viu Werá dentro do carro com uma das figurinistas. Deu suaves batidas no vidro, mas, pelo choque dos dois, devem ter soado como tiros. A moça saiu do carro às pressas, fez uma pequena mesura e correu em direção ao closet geral. Werá apenas observava a cena com uma cínica cara de bocó.

- O que você está fazendo, curumim???? Tá doidão de cachimbo da paz?? - Susana abriu a porta do carro e puxou Werá pela gola da camiseta

- Você sabe que não é assim que essas coisas funcionam, né?

- Cala a boca.  Agora segura a minha mão e trate de ficar feliz por isso. E vê se faz um esforço pra manter tua "cobra nativa" longe das "matas  atlânticas" por aí, senão você vai estragar tudo.

O casal caminhava de mãos dadas pelos corredores da emissora, mas agiam como condenados por formação de quadrilha. Sem sorrisos novos e sem olhares cheios de códigos e significados,   apenas as mãos se tocavam.

- Susangada, ninguém vai acreditar nisso desse jeito.

- Você não parecia preocupado com o que as pessoas pensariam quando estava com aquela funcionária dentro do carro.

- Então essa é a questão? - Werá gargalhou - Susangada, você está com ciúmes?

Susana parou, tomou fôlego e, de ponta de pés, apontou seu dedo indicador bem na ponta do nariz do rapaz:

- Eu não dou a mínima pra quem você pega ou deixa de pegar, o que você não pode fazer é estragar a minha chance de ir pra final. Se alguma dessas meninas resolve dar com a língua nos dentes, nós estamos fritos. Ou melhor, você estará, porque eu irei para a frente de todas as câmeras disponíveis para falar o quanto estou destruída por ter sido traída e o quão crápula você é. Não me tente, ou eu vou acabar com sua carreira e todos os projetos que você tiver, ok?

- Você fica lindinha quando está brava.

Susana grunhiu enquanto ignorava o sorrisinho irônico de Werá. Mas, por saber que ele estava certo, entrelaçou os dedos nos dele e sorriu. Quem olhasse de longe, pensaria se tratar de um casalzinho jovem e tímido.

O ensaio pareceu demorar mais do que de costume, mas essa impressão se deu pelo sentimento de ódio de Susana. Era muito mais difícil ensaiar olhando para Werá e flertando com ele.

Os jornalistas vieram, fotógrafos capturaram o máximo de momentos possível, mas, para desespero da maioria, 97% das fotos e vídeos eram do casal do momento. Os jornais falavam disso, as manchetes, as revistas de fofoca e todos os portais possíveis estavam noticiando esse possível par romântico tão badalado. Era a favorita da competição aliada ao colírio da edição, o caliente e misterioso gato hispânico, Martín Rodríguez. Era mais do que a emissora seria capaz de sonhar, bom demais pra ser verdade, engajamento do público e encheção de linguiça em todos os programas, tudo sem grandes esforços ou maiores pagamentos. Era perfeito pra todo mundo.

Ao fim do expediente do dia, Werá e Susana foram juntos pro carro. O "indiomóvel" ainda tinha o cheiro do perfume da jovem tripulante de mais cedo. Werá fingiu não notar que Susana parecia mais estressada que o normal, mas ela não lhe deu essa opção por muito tempo.

- Você não se importa em ficar com qualquer pessoa? Não tem significado algum pra você?

- Não.

- Mas e pros indígenas?

- Susana, nós não somos um povo só ou uma instituição que é liderada por um único mandamento. Existem povos que veem o sexo como ato de procriação, outros como forma de gerar prazer mútuo e ainda existem os que entendem a relação sexual como objeto sagrado e que só deve ser praticado com uma mesma pessoa o resto da vida. Eu escolhi ver como uma dádiva da criação, então eu aproveito cada momento como um presente dos espíritos. Eu achava que você fosse mais mente aberta pra essas coisas, afinal, nós estamos namorando só de mentirinha. Mas, você tem razão, alguém pode acabar estragando tudo. Eu prometo me comportar e, para selar a paz, vou te levar num lugar encantado: vamos a um fliperama.

- Como assim "fliperama"? Você é um indígena nerd saudosista?

- Não é coisa de nerd! Arcade é tipo um caça-níquel da burguesia. Isso é quase uma arte, tá? Eu vou te levar num lugar legal.

- Tudo bem, mas eu vou te destruir no Pac-Man.

- PAC MAN???? Quem está sendo saudosista agora?

E foram. Passaram horas lá. Surpreendentemente, Susana era mesmo boa jogadora. Se divertiram muito e, pela primeira vez desde que se conheceram, o público não era a prioridade. Não importava. Estavam sozinhos num fliperama do outro lado da cidade, acompanhados apenas pelo segurança do lugar e da moça do caixa. Foi espontâneo, leve e Werá finalmente falou um palavrão desses bem pesados. Susana riu tanto que sentia as bochechas doerem. Em certo momento, enquanto observava Werá tentar superar a pontuação dela em Donkey Kong, Susana repensou o ele dissera no carro. "Ver cada momento como um presente", aquele certamente ficaria guardado pra sempre com ela. Sorriu.

- AAAH MERDA!!! - Werá gritou - Cara, como você aprendeu a jogar isso tão bem? Deve ter treinado muito para conseguir deixar esses dedinhos tão rápidos, não é, danadinha?

Susana riu. Sentiu o coração descompassar, mil coisas passaram na mente, desejou não ter mais nada em volta. Se bem que, naquele momento, não tinha mesmo. Talvez se arrependesse amargamente pelo resto da vida, mas, se aquele momento era um presente, faltava um laço de fita brilhante.

- Werá...

Ele se virou e, antes que pudesse responder, Susana impulsionou seu corpo contra o dele e, de ponta dos pés, o beijou.

It's (NOT) A Love SongOnde histórias criam vida. Descubra agora