29 ▪︎ O Mundo Perdido

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Cris não sabia ao certo o que esperava, mas sabia que não era aquilo. Desde o início da sua noite na casa de Augusto, os demais membros da família não estavam sendo nada simpáticos. Na verdade, era tão desconfortável estar ali quanto era o sofá da empresa onde morava. Observando aquelas pessoas, Cristiane só se perguntava como era possível que o Augusto fosse tão amável mesmo tendo crescido nesse núcleo familiar tão esquisito. Porém, agora, deitada em uma cama encaixada no meio de um quartinho de bagunça, Cris pensou na irmã e em si mesma. Mesmo tendo crescido num lar bisonho, nenhuma das duas era drogada e nem tinha amantes... Bem, pelo menos ela não tinha. Seus devaneios foram interrompidos por uma voz grave vinda da entrada do cômodo:

— Eles melhoram com o tempo, eu juro. Eu... Desculpe por isso. — Augusto tinha um olhar triste

— Por qual parte exatamente? A sua irmã tentando me convencer de que vou pro inferno por cortar o cabelo e usar calça e brinco? Sua mãe fofocando sobre eu ser uma promíscua porque vim dormir na casa de um homem? Ou pelo seu irmão que não soltou o gameboy nem quando dei "boa noite"? — Cris não estava brava, estava tentando brincar sobre o assunto, mas ambos sabiam que aquela rejeição estranha tinha machucado bastante

— Eles não eram assim antes do meu pai partir... Era diferente. A dor muda as pessoas.

— Você tem razão. — Cris sentou-se — E acho que a dor tem grande uma parcela de culpa sobre esse bafafá da Susana. Ela tá ainda mais pra baixo do que estava antes desse show começar. Será que eu fiz a coisa certa em mandá-la pra lá, Gus?

— Gus? Que estranho, ninguém me chama assim. — Augusto sorriu enquanto sentava na pontinha do colchão forrado — Tá. Eu não acho que o problema tenha sido você, Cris. Você é uma garota de 16 anos tentando resolver a vida de uma mulher de quase 20. Não parece justo você se culpar por nada disso. Você tá certa sobre a dor da Su, mas só ela pode escolher o que fazer com o próprio sofrimento. Pelo que entendi, ela transformou o luto em ódio e obsessão. Mas e você? O que tá fazendo com o seu luto? Você também perdeu a mãe e está sem seu pai. Não me parece nada saudável você sufocar sua dor para cuidar da sua irmã mais velha.

— Eu... eu não sei. Eu nunca penso nisso por muito tempo.

— No luto?

— Em mim. — o olhar de Cristiane vagou pelo cômodo abarrotado de quinquilharias.

— Mas deveria. E tá precisando. Só não vai começar justo agora, você precisa dormir — apoiando as mãos no joelho, Augusto levantou e foi em direção à porta, mas virou-se antes de sair — Qualquer coisa, eu estou no quarto logo à esquerda. Boa noite, "Crisinha".

— Isso é por eu ter te chamado de Gus? — Cris sorriu — É meio fofo, eu gostei. Boa noite pra você também, "Gus".

Sorriram, mas ambos sabiam que Cris não ia dormir bem naquela noite.

**********

A ansiedade cumpriu com excelência seu papel de despertador e fez Susana levantar da cama pontualmente às 5:39. Mesmo que seu horário na emissora fosse apenas às 14h, seu incômodo rapidamente tornou-se insuportável e sua mente expulsou seu corpo cansado do conforto do quarto.

— Acorda e esquenta o indio-móvel. Você tem que me levar pra fazer umas coisas. — Susana não deu a Werá a possibilidade de discutir sobre sua ordem — Vai se vestir enquanto eu passo o café. Não veste a mesma roupa de ontem, senão as fotos tiradas hoje vão perder o valor.

— Mas você vai vestir a mesma roup... Ah, entendi!! Você é bastante inteligente — Werá ainda parecia atordoado de sono — Bom dia pra você também, Susangada. Dormiu bem na cama que você roubou? Porque a minha noite aqui foi péssima.

— Eu dormi maravilhosamente bem, muito obrigada.

— Ah, claro. Eu até ia te perguntar como sua mente te deixa dormir mesmo sendo essa pessoa horrível, mas o fato de você acordar antes das 6h em pleno domingo já comprova que ela não deixa.

Após o desjejum, o "feliz casal" foi desfilar em seu indio-móvel pelo centro da cidade.

**********

— Isolamento!

A voz feminina era familiar, mas parecia distante demais pra ser real. Depois de alguns segundos de silêncio, a mesma voz chamou, ainda baixinho, mas com mais empolgação.

— Augusto, eu descobri o  lance do meu luto: é isolamento. Agora eu vou embora, tá? Desculpa todo o incômodo. É que eu nunca passei uma noite sozinha. Fiquei com medo e não tem mais ninguém que eu conheça e confie além de você. Enfim, desculpa de novo. Obrigada por me deixar passar a noite aqui.

Antes que pudesse abrir os olhos e processar a informação, Augusto ouviu Cristiane bater a porta da sala. Com pressa, levantou-se já buscando uma das camisetas largadas pelo quarto e vestiu enquanto atravessava apressadamente o corredor. A chave do carro quase caiu do gancho, tamanha a pressa do rapaz que a puxou. Agradeceu aos céus pela noite não ter sido fria, pois o motor do carro não demorou a pegar. Rapidamente encontrou sua pequena hóspede em fuga andando em direção ao ponto de ônibus. Parou ao lado dela e buzinou:

— Pois, no que depender de mim, você nunca mais vai estar sozinha. Vem, entra no carro, eu te deixo no escritório.

**********

Susana atravessou o corredor da casa de sua mãe enquanto Werá a seguia silenciosamente logo atrás. O lixo tinha sido retirado e a reforma chegou a começar, mas tinha sido interrompida devido à falta de dinheiro. O mestre de obras falava sobre todo o procedimento que fizeram e de quanto ainda precisariam gastar para terminar. Impaciente, Susana interrompeu:

— Quanto o senhor quer pra me entregar essa casa pronta ainda esse mês?

— Ora, dona Susana, assim de pronto, eu não sei. Juntando a diária de serviço, o material e tudo...

— Arredonda pra cima porque eu só vou te dar esse valor e acabou. Quero a casa pronta no fim do mês.

— Mas não é assim que funciona...

— Toma. — Susana entregou um envelope de papel pardo. Além do cachê da entrevista, tinha mais umas economias que, ao todo, passavam dos R$1000,00 — É o suficiente. Eu volto no fim do mês.

O homem observou embasbacado quando os jovens deixaram a casa e entraram no carro. Não sabia o que era mais chocante: uma moça tão nova ter tanto dinheiro ou o fato dessa moça turrona feito uma mula velha ter um namorado tão bocó. Sorriu. "Casal desarranjado da moléstia".

It's (NOT) A Love SongWhere stories live. Discover now