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Aviso: o capítulo a seguir relata um acontecimento fictício. A narrativa aqui presente apenas usa de fatos reais para criar um episódio condizente com a história, inspirada no atentado ocorrido em Boston, em 2013, e nos ataques ocorrido em Paris, em 2015.

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30 de dezembro de 2013

Virgínia Beach, Virgínia – Estados Unidos

Jack está irritado. Não, não. A irritação já passou. No momento, Jack está furioso. Está irado. Está possesso. Está puto. Está completamente puto. Consigo mesmo por ter cedido. Com Charlie por ter insistido. Com o mundo por apenas ser assim. Com quem quer que seja o idiota — o grandessíssimo desgraçado filho da puta que, se ainda não morreu, vai morrer nas mãos dele — que fez o que fez. Não se trata apenas de raiva; há algo de ódio ali. Tudo isso camufla o medo, o pânico e a incerteza. Esses sentimentos, sentimentos que Jack não pode lidar porque vão desnorteá-lo e, desnorteado, ele pode paralisar ou só não fazer o que precisa, e deve, fazer, vibram muito pouco abaixo da superfície. Para que venham à tona, basta um segundo de redução da fúria; basta um pensamento, um nome em uma frase infeliz. E o grande problema — algo que faz Jack ficar ainda mais puto — é que a frequência com que tem sido honesto e falado debilitou uma parte de suas habilidades em dissimular e fingir, tanto para os outros quanto para si próprio. Sente a si próprio fraquejando diante da tentativa de manter o alto nível de ira até ter uma resolução.

Ou será que... Bom, talvez tenha mais relação com toda a combustão sentimental que há do que com a honestidade em desenvolvimento dele. Talvez, só talvez, algo em Jack já tenha compreendido a dimensão do que se passa com muita clareza. Um lado inconsciente. Reservado e tímido, diria seu psicólogo. Tão tímido que, apesar de saber o que se passa, prefere se conter, guardar para si e permitir que os outros entendam por conta própria — e, então, sente-se mal porque tinha a vantagem e poderia ter se divertido com ele. Talvez, o fato de os amigos de Jack estarem envolvido, dos filhos e esposas de seus amigos estarem envolvidos mude totalmente o modo seu inconsciente quer lidar com a situação. Talvez o fato de que Char... De que ela está envolvida, a possibilidade real de perde-la, torne impossível ser só furioso porque há tanta dor na singela sugestão, na simples imaginação, que Jack sente seus músculos esticados, forçados e, em seguida, recolhendo-se numa resposta bruta, travados. Tão travados que é difícil coloca-los em uso e empurrar o medo mais para fundo, deixando que a raiva seja, além do sentimento dominante, o único em um horizonte perceptível.

Porque, apesar de saber que, se fosse a vontade dela, ele abriria mão independente dos próprios sentimentos, Jack nunca pensou no que seria um final definitivo. Uma perda permanente. Puta merda! Porra! Ele não pode perde-la.

— O papai e a mamãe, tio Jack...

E que ironia é ter Olivia ainda encaixada nos seus braços, agora chorando sem qualquer tipo de contenção. A idade que ela tem hoje não é tão diferente da idade que Alice tinha — e, agora que Jack tem dado abertura para a avalanche de memórias e lembranças, sabe que tem a risada parecida e que, de uma forma estranha, as duas balançam o pé esquerdo sempre que empurram uma mexa mais grossa de cabelo para trás. Jack sempre quis uma chance de voltar no tempo e fazer diferente, uma oportunidade de redenção real e não apenas o perdão imaginário que deveria conceder a si próprio. Talvez seja aquilo. Só que, se for, é cruel. É cruel que, para sentir que quitou uma dívida, Jack precise abrir um débito ainda maior. É cruel e, ainda que ele seja um filho da puta egoísta, é injusto. Injusto demais. É errado dar a oportunidade de paraíso para alguém, permitir que se acostume com ela até ser tudo que conhece, então, arranque, oferecendo apenas a tristeza na sua forma mais pura.

O silêncio das águasWhere stories live. Discover now