04.

201 27 31
                                    

04.

30 de dezembro de 2013

Virgínia Beach, Virgínia – Estados Unidos

Charlie se sente segura. 

Ela pode sentir o sol frio de Brighton daquela manhã de final de outubro, quando o outono ainda não tinha se despedido por completo e nem cedido espaço para o inverno, frio, gélido, com a neve substituindo a chuva, menos melancólico e mais fantasioso, que viria a seguir. Se olhar para cima, pode ver fragmentos de um raio que não é laranja e nem chega perto de um amarelo vivo; é só um brilho opaco, cansado, como se, naquela manhã, percebesse o quanto da própria energia já tinha gasto pelos outros e apenas diminuísse, poupando para algo que apenas Deus sabe o que é. As folhas, por sua vez, que obstruem parcialmente a visão de uma forma que ela acha encantadora, até cinematográfica, ou que já se acumularam sobre o chão, cobrindo o solo marrom dali em um tapete natural e grosso não são verdes e isso tem um bom tempo. Há uma mistura entre tons de laranja que, certamente, são quentes, alguns amarelos e até um pouco de marrom.

Charlie nunca soube bem o motivo, mas o outono sempre lhe pareceu uma estação calorosa, como um abraço familiar. Ela ainda tem essa sensação, especialmente porque, alguns passos atrás de si, com o marrom desgastado da costumeira bota militar afundando entre a folhagem, os próprios pés parecendo um pouco incertos, os óculos escuro sob o rosto e a barba devidamente feita, os cabelos devidamente cortados, Jack, apesar da distância oscilante entre seu corpo e o de Charlie, recusa-se a largar os dedos dela. Na mão esquerda, lançada para trás sem cuidado ou preocupação, tem a cesta de piquenique de Diana, balançando pelo peso que comporta e pelo próprio movimento deles. Charlie sabe que há uma toalha xadrez ali, sabe que há torta e café, mas, mesmo que tenha sido ela a encaixar os itens, um por um enquanto, de uma forma tão infantil que a faria se constranger depois, ao lembrar do quão tola se pode ser e do quão rápido a vida pode mudar, não consegue listar tudo que colocou. É muito para eles dois e as sobras vão ocupar espaço na geladeira por um tempo antes de serem consumidas por completo. Charlie é contra o desperdício — como poderia não ser? — mas, daquela vez, depois de meses são escassos, um pequeno excesso entre eles não lhe parece nada exorbitante e nem inadequado. Talvez ela, ele — eles —mereçam isso.

Sempre que olha para trás, o cabelo solto se balança, os fios, que agora são castanhos — uma cor que, para Charlie, ainda parece incerta, mas que faz com que Jack se lembre de avelãs, chocolate e do calor e seguridade de uma vida tão antiga que ele nem sabe se foi real, sentado ao redor de uma lareira com uma xícara em mãos — chicoteando contra o tricô do suéter. Ao colocar os olhos nele, Charlie sorri, dentes expostos atrás de lábios sutilmente coloridos de rosa, como um reflexo que ela não pode conter e que é tão natural que apenas acontece. Acontece porque, após ter sido arrumado por ela própria, seu lenço vermelho rodeia o pescoço dele, como uma versão muito mais fina de um cachecol. Sorri porque se lembra de como, em todas as sextas, ele deixe que ela guie até o consultório do médico e que o espere na porta. Charlie não tem certeza se Jack sabe que, vez outra, em um misto de curiosidade e receio, ela aguarda no interior do carro, estacionada um pouco mais a frente, olhos passando para os retrovisores de tempos em tempos e as unhas sendo roídas não pelo medo de ser pega em flagrante, mas pela preocupação de que ele cruze a porta antes do tempo mínimo, como uma farsa óbvia e mal feita. Jack já tentou fingir, embora nunca tenha se comportado como um ator, mas, desde o dia em que se comprometeu com ela e consigo mesmo, e que admitiu a verdade inegável de que precisava de ajuda, ele não finge tanto mais. É apenas ele, com todos os problemas ainda expostos, talhados nos músculos do corpo, transparecendo sob uma pele fina. Sutilmente, a cada dia, parece-se mais com o Jack dela, que faz Charlie se sentir protegida, segura e amada.

O silêncio das águasWhere stories live. Discover now